domingo, 19 de setembro de 2010

Saudades From Angola II


Aqui é do outro lado do oceano. O mar, que me indicava o leste, fica a oeste. Mudam também outras referências. Aqui minha casa não é porto. Não anseio em voltar depois da tempestade. O dormir é solitário. Percebi, depois de meses, que mesmo tendo toda a cama só para mim, ocupo apenas uma metade. A esquerda. Isto não mudou. Mudaram os sons e as cores, o ritmo da vida. O céu, permanentemente nublado pelo cacimbo não exibe aquele contraste entre um azul vivo e o branco algodão das nuvens. Também não chove. Há dois meses não sinto aquele cheiro de terra molhada, aquele vento mais forte, aquele cinza chumbo que cobria o céu, os trovões. Não vejo as nuvens escuras que sempre se aproximavam a partir do mar de Itapoan, brindando-me com um espetáculo sempre igual, sempre renovado, sempre renovador. Aqui o vento sopra do continente para o oceano e mesmo próxima ao mar a paisagem é ressequida. Os padrões de beleza têm que ser reaprendidos e o aprendizado é lento e doloroso. Aqui conheci desertos. Uma imensidão de igualdade perturbadora, sem pontos de referência, onde se pode morrer facilmente. Não há árvores, não há pedras, não há elevações, não há vida, não há sons e nem sombra. É de uma monotonia enlouquecedora. Ontem me mostraram uma flor local, lindíssima, chamada Rosa de Porcelana. Dizem que pode ser cortada e enviada para alguém e permanece viçosa por muito tempo. Suas cores são matizes de vermelho. Sua consistência é tão firme quanto a de uma flor artificial. Nunca tinha visto nada igual. Ontem comi e bebi vinho com novos amigos. Compartilhei da sua hospitalidade. Brinquei com seus filhos. Diverti-me e sorri bastante. Depois voltei ao hotel. Hoje descobri que no domingo a tv local também exibe o Globo Rural. Assisti contente qual criança ao descobrir que ganhou um brinquedo novo. Fiquei feliz. Depois o Renato Teixeira foi entrevistado e cantou Romaria e outras coisas lindas que falam de um Brasil que já era distante quando eu estava aí. Tocou sua viola caipira, um som agudo, metálico, pungente. Evocou lembranças indistintas. Fiquei feliz de novo. Daqui a pouco devo falar com a esposa e os filhotes por telefone. Possivelmente a sogra e o sogro vão estar por perto. Vou falar com eles também. Não devo perder oportunidades. Vou ficar feliz mais uma vez. Permaneço atento. A felicidade e a alegria têm que ser trabalhados a cada passo. É difícil, mas o simples exercício já ajuda. Lembro recorrentemente de um verso do Jorge Vercilo. ”Ela está em todas as coisas, mesmo no vazio que me dá”. Tenho a pretensão, ou mais provavelmente a necessidade de crer que entendo exatamente o que ele quer dizer.

domingo, 12 de setembro de 2010

Trilhas Sonoras


A distância da família causa transformações em diversos aspectos e formas de ver a vida. Por exemplo, hoje, daqui de longe, morrendo de saudades e disposto a perdoar qualquer coisa, acho que sempre fui rigoroso e intolerante demais com o Sean e o Levi, e fico me prometendo que vou mudar mas com medo de que ao voltar ao convívio com eles minhas ranhetices se sobreponham a esta disposição e eu volte ao “normal”. Outra dimensão, que deu origem a este escrito em particular, é a relação com a música. Aí era diversão. Aqui é necessidade visceral. A musica brasileira aqui é ubíqua. Os sucessos são das mais variadas épocas e até Moreira da Silva é muito ouvido e citado e as pessoas se surpreendem porque não identifico suas músicas. Só conheço aquela do famoso Kid Morangueira e outra em que ele começa reclamando na subida do morro de que o sujeito bateu na nêga dele e termina enfiando a navalha na barriga do agressor. Os hits aqui têm muito a ver com as novelas brasileiras que estão no ar, e sucessos bastante antigos às vezes são bastante atuais em Angola. Além destas sazonalidades, algumas super estrelas são permanentes, como Ivete, Daniela, o eterno Rei. Aliás, só os discos do Roberto representam metade das opções da loja do shopping. Para mim, a nossa música me ajuda a superar a solidão, às vezes acentua as saudades e sempre distrai no eterno engarrafamento. Há entretanto alguns momentos em particular que se destacam. Primeiro, na viagem para o Namibe, descendo a obra de arte natural que é a Serra da Leba, com Victor e Ivo, ambos apaixonados pela nossa música. Este último colocou o disco dos Tribalistas para tocar e eu fui ouvindo a voz melodiosa da Marisa e os tons guturais do Arnaldo em meio a músicas que transformavam o ambiente, já surreal, em quase divino. Montanhas, precipícios, deserto, e a Marisa encantando “meu melhor amigo é o seu querer”. Foi um momento muito legal, especial. Na volta, total reviravolta de estilos. O Ivo, talvez motivado pela solidão e quietude do deserto, me sacou um disco pirata com mais de quarenta músicas, cada uma contando uma história de sofrimento mais trágica que a outra e ouvi Nilton César cantando “receba as flores que lhe dou”, Reginaldo Rossi explicando ao garçom que todo bêbado é chato, mas que ele tinha o direito a se embebedar e cair, pedindo que, neste caso, o deixassem dormir no chão. Um outro cantor, totalmente desconhecido para mim, explicando que quem faz o mal tem que ir para o inferno e que ele estava sofrendo justamente porque fez sofrer à esposa, e que Deus tinha mesmo que castigá-lo. Em especial no caso do tal Nilton César, quem parecia estar sendo castigado era eu, porque quando criança tinha uma vizinha insuportável, que obrigava toda a redondeza a ouvir o mesmíssimo (do Nilton) disco o dia todo, repetindo-o quando chegava ao fim. Foi muito engraçado. O Ivo contou que Gilson, meu amigo desde sempre, já havia feito três cópias do disco, uma das quais deu a um cunhado, o qual, quando ouviu a música do tal que queria mesmo sofrer por ter feito maldades com a esposa, chorou feito menino, tomou todas e passou o domingo bêbado (apesar do incomum gosto para presentes, Gilson tem diversos outros predicados, daí sermos amigos há tanto tempo). Rimos muito os três, e o Ivo conhecia todas as letras. Pouco mais de uma semana depois viajamos eu e Victor de Luanda até Benguela e desta vez a experiência lembrou a da Serra, fase I (tribalistas). Havia no carro uma coleção inteira do Chico e eu, no meio de estradas que misturavam mar de um lado, savanas e montanhas do outro, ouvia a poesia belíssima do brasileiro que mais entende de mulher cantando músicas da Ópera do Malandro, Bye Bye Brasil, Com Açúcar Com Afeto e outras maravilhas. Foi mais uma experiência fantástica. Entretanto, além destes momentos especiais pontuais, há a minha trilha sonora cotidiana, o que ouço em casa e no carro. Em casa a Vanessa da Mata me encanta com Amado, me pirraça e põe o dedo na minha ferida (a inseparável solidão) quando declama os versos “ainda bem, que você vive comigo, porque senão, o que seria da vida, sei lá, sei lá”. No carro a Marisa se incumbe de fazer o mesmo quando lembra a falta da companheira, a Léri, dizendo que não é fácil não te ter todo dia, não te contar meus os planos, não te encontrar. Há também momentos mais amenos, quando o Vercilo, Chico, Roberto e Caetano cantando Tom, Marina, me transportam para lugares de tranquilidade, me trazem sentimentos bons, me recordam experiências felizes, enfim, me ajudam a superar. Por coincidência ontem fui com amigos a um bar próximo de casa com música ao vivo e ouvi a baiana Márcia Short, surpreendentemente, cantando Rio Antigo, do Chico Anísio, Como Dois e Dois do Caetano e outras pérolas. Prá não deixar barato, já que tudo estava perfeito demais, terminou com o reboleixon (é assim que se escreve?). Mas foi só esta em mais de uma hora de show. E como estou numa fase mais magnânima, dá pra perdoar.