domingo, 12 de setembro de 2010

Trilhas Sonoras


A distância da família causa transformações em diversos aspectos e formas de ver a vida. Por exemplo, hoje, daqui de longe, morrendo de saudades e disposto a perdoar qualquer coisa, acho que sempre fui rigoroso e intolerante demais com o Sean e o Levi, e fico me prometendo que vou mudar mas com medo de que ao voltar ao convívio com eles minhas ranhetices se sobreponham a esta disposição e eu volte ao “normal”. Outra dimensão, que deu origem a este escrito em particular, é a relação com a música. Aí era diversão. Aqui é necessidade visceral. A musica brasileira aqui é ubíqua. Os sucessos são das mais variadas épocas e até Moreira da Silva é muito ouvido e citado e as pessoas se surpreendem porque não identifico suas músicas. Só conheço aquela do famoso Kid Morangueira e outra em que ele começa reclamando na subida do morro de que o sujeito bateu na nêga dele e termina enfiando a navalha na barriga do agressor. Os hits aqui têm muito a ver com as novelas brasileiras que estão no ar, e sucessos bastante antigos às vezes são bastante atuais em Angola. Além destas sazonalidades, algumas super estrelas são permanentes, como Ivete, Daniela, o eterno Rei. Aliás, só os discos do Roberto representam metade das opções da loja do shopping. Para mim, a nossa música me ajuda a superar a solidão, às vezes acentua as saudades e sempre distrai no eterno engarrafamento. Há entretanto alguns momentos em particular que se destacam. Primeiro, na viagem para o Namibe, descendo a obra de arte natural que é a Serra da Leba, com Victor e Ivo, ambos apaixonados pela nossa música. Este último colocou o disco dos Tribalistas para tocar e eu fui ouvindo a voz melodiosa da Marisa e os tons guturais do Arnaldo em meio a músicas que transformavam o ambiente, já surreal, em quase divino. Montanhas, precipícios, deserto, e a Marisa encantando “meu melhor amigo é o seu querer”. Foi um momento muito legal, especial. Na volta, total reviravolta de estilos. O Ivo, talvez motivado pela solidão e quietude do deserto, me sacou um disco pirata com mais de quarenta músicas, cada uma contando uma história de sofrimento mais trágica que a outra e ouvi Nilton César cantando “receba as flores que lhe dou”, Reginaldo Rossi explicando ao garçom que todo bêbado é chato, mas que ele tinha o direito a se embebedar e cair, pedindo que, neste caso, o deixassem dormir no chão. Um outro cantor, totalmente desconhecido para mim, explicando que quem faz o mal tem que ir para o inferno e que ele estava sofrendo justamente porque fez sofrer à esposa, e que Deus tinha mesmo que castigá-lo. Em especial no caso do tal Nilton César, quem parecia estar sendo castigado era eu, porque quando criança tinha uma vizinha insuportável, que obrigava toda a redondeza a ouvir o mesmíssimo (do Nilton) disco o dia todo, repetindo-o quando chegava ao fim. Foi muito engraçado. O Ivo contou que Gilson, meu amigo desde sempre, já havia feito três cópias do disco, uma das quais deu a um cunhado, o qual, quando ouviu a música do tal que queria mesmo sofrer por ter feito maldades com a esposa, chorou feito menino, tomou todas e passou o domingo bêbado (apesar do incomum gosto para presentes, Gilson tem diversos outros predicados, daí sermos amigos há tanto tempo). Rimos muito os três, e o Ivo conhecia todas as letras. Pouco mais de uma semana depois viajamos eu e Victor de Luanda até Benguela e desta vez a experiência lembrou a da Serra, fase I (tribalistas). Havia no carro uma coleção inteira do Chico e eu, no meio de estradas que misturavam mar de um lado, savanas e montanhas do outro, ouvia a poesia belíssima do brasileiro que mais entende de mulher cantando músicas da Ópera do Malandro, Bye Bye Brasil, Com Açúcar Com Afeto e outras maravilhas. Foi mais uma experiência fantástica. Entretanto, além destes momentos especiais pontuais, há a minha trilha sonora cotidiana, o que ouço em casa e no carro. Em casa a Vanessa da Mata me encanta com Amado, me pirraça e põe o dedo na minha ferida (a inseparável solidão) quando declama os versos “ainda bem, que você vive comigo, porque senão, o que seria da vida, sei lá, sei lá”. No carro a Marisa se incumbe de fazer o mesmo quando lembra a falta da companheira, a Léri, dizendo que não é fácil não te ter todo dia, não te contar meus os planos, não te encontrar. Há também momentos mais amenos, quando o Vercilo, Chico, Roberto e Caetano cantando Tom, Marina, me transportam para lugares de tranquilidade, me trazem sentimentos bons, me recordam experiências felizes, enfim, me ajudam a superar. Por coincidência ontem fui com amigos a um bar próximo de casa com música ao vivo e ouvi a baiana Márcia Short, surpreendentemente, cantando Rio Antigo, do Chico Anísio, Como Dois e Dois do Caetano e outras pérolas. Prá não deixar barato, já que tudo estava perfeito demais, terminou com o reboleixon (é assim que se escreve?). Mas foi só esta em mais de uma hora de show. E como estou numa fase mais magnânima, dá pra perdoar.

2 comentários:

  1. Pois é, mano. Você está vivendo parte das minhas dores vividas quando me mudei para cá, acrescidas de mais algumas que, felizmente, não vivenciei. A música foi e é um instrumento de consolo, punição (pelas memórias que desperta e não transforma em realidade)e prazer - nada melhor do que soltar a guela acompanhando uma das favoritas. O YouTube é um tesouro e você pode e deve explorá-lo - para atualizar o repertório dos amigos aí. Beijos!

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  2. Já que o tema é música, misturada com saudade, deixo aqui a impressão do seu post com uma música de Marisa Monte, Gentileza, sem dúvida, o que nos falta nesse mundo doido...

    Gentileza
    Marisa Monte

    Apagaram tudo
    Pintaram tudo de cinza
    A palavra no muro
    Ficou coberta de tinta

    Apagaram tudo
    Pintaram tudo de cinza
    Só ficou no muro
    Tristeza e tinta fresca

    Nós que passamos apressados
    Pelas ruas da cidade
    Merecemos ler as letras
    E as palavras de Gentileza

    Por isso eu pergunto
    À você no mundo
    Se é mais inteligente
    O livro ou a sabedoria

    O mundo é uma escola
    A vida é o circo
    Amor, palavra que liberta
    Já dizia o Profeta

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