terça-feira, 31 de agosto de 2010

Do Lubango ao Namibe passando pela Serra da Leba III


A Serra da Leba desce de quase dois mil até trezentos metros acima do nível do mar, quando a paisagem começa a mudar e se deixa um terreno com muitas pedras, mas também muita vegetação, muito verde, e começa-se a adentrar num trecho em que a vegetação fica cada vez mais rala, amarelada, baixa e as pedras aumentam. É a transição entre a serra e o deserto. Mais uma meia hora e a vegetação praticamente desaparece.

Sou informado de que aquele trecho é tão inóspito que há noventa quilômetros existe uma pentenciária que não tem (porque não precisa, ninguém sabe para onde fugir) muros. Por mutos e muitos quilômetros apenas as pedras e um chão que não é aquele que nos acostumamos a ver na televisão, nos desertos de Hollywood, de areia fina. O deserto do Moçâmedes é de um chão argiloso, duro, amarelado. De repente o olhar treinado do Victor chama a atenção para algo à esquerda do carro. São babuínos que fogem para o alto de uma gigantesca rocha quando nos aproximamos, tornando-se pouco mais que pequenos pontos quase indistintos.

À nossa frente, um buraco natural na rocha com dois ou três metros de profundidade por uns quatro de diâmetro, guarda ainda um resto da maior riqueza que se poderia encontrar por ali. Um resto de água suja, verde, mas ainda assim, água, num raio de muitos quilômetros, o suficiente para manter aquele bando ali por perto.


Mais uma vez o chão esbranquiçado e sem vegetação retoma a paisagem. Nenhuma planta, nenhuma sombra, nenhuma água, nem mesmo pedras para quebrar a monotonia da viagem.
De repente o Ivo avisa: daqui a pouco vamos passar por um oásis. Vêem me à mente visões árabes com tamareiras, areias, um pequeno lago de águas cristalinas, mas a realidade é completamente diferente.
Do nada, surge uma uma pequena região com vegetação viçosa de ambos os lados da estrada, por um trecho de poucas centenas de metros, o suficiente para que um grupo de pessoas viva ali. Percebe-se pequenas plantações, poucos animais e sinais de vida em comunidade. Esta grande árvore ao lado parece-se bastante com árvores de florestas assombradas de filmes infantis e é única dentre o restante da vegetação. Assim como pouco antes, logo depois o chão seco e áspero retoma a cena. Seguimos por mais uns quinze a vinte minutos e novamente percebe-se a presença de água, ainda que em meio ao ambiente hostil. Estamos nos aproximando da cidade do Namibe, do mar. Namibe é uma cidade pequena, pacata, com um tipo de urbanização completamente diferente de Lubango, vive em função do mar. Seus pratos típicos são deliciosos.
Comi um carangueijo com mais de vinte centímetros de tamanho, com o casco bem mais tenro que os caranguejos brasileiros, de alto mar. Delicioso. No mercado lulas, chocos e peixes diversos estão expostos em balcões e todos os vendedores e vendedoras tentam convencer você de que seu peixe é mais fresco e melhor. A variedade de produtos é impressionante. Vi uns peixes galo que pelo tamanho deviam se chamar aqui de peixe peru. Muito maiores que os do Brasil, pelo menos o dobro do tamanho. Também muitos peixes salgados atendem às necessidades daqueles que têm que fazer longos percursos pela região, sem ter como manter o produto resfriado. Quando se observa bem, percebe-se que o deserto vai até o mar. O Rui, nosso anfitrião local me fala de uma planta carnívora que só existe naquela região, capaz de matar pequenos coelhos e pássaros. Segundo ele, seu interior aveludado é convidativo e os animais se deitam e se aconchegam para escapar do frio. Encontram depois apenas a pele e os ossos ressecados. Fica para a próxima visita.

À esquerda, as lulas, mais distantes, e o choco, maior, molusco muito comum e muito consumido por aqui. Do lado oposto o super peixe galo, com pelo menos uns trinta centímetros de tamanho e bastante grosso em relação ao que costumava ver nas praias e feiras do Brasil. Observem que eles estão numa bacia alta e as cabeças ficam bem acima da borda.


sábado, 28 de agosto de 2010

O que se vende na rua em Luanda II




Como este tema é praticamente inesgotável, decidi que a cada novidade interessante, acrescento o material ao texto anterior e lanço uma nova edição, assim, quem já leu fica apenas na parte inicial do texto, e quem lê pela primeira vez não precisa ir buscar os anteriores para se informar.
Em outras duas passagens pelo mesmo trecho eternamente engarrafado de Luanda na qual se baseou o texto anterior sobre o tema, em uma das principais avenidas que dão acesso ao centro da cidade (Rua da Samba, próximo ao Viaduto do Prenda), registrei alguns novos (outros nem tanto) itens vendidos por ambulantes entre os carros. A propósito, ainda me surpreendo bastante com a ausência de acidentes, já que num espaço apertado entre carros (que disputam acirradamente cada metro de asfalto) passam à toda lambretas e motos a cada minuto, e os condutores e ambulantes conseguem se evitar mutuamente, sabe Deus como. Aqui vão: colchão e poltrona infláveis, ancinho, tesoura e enxadete de jardinagem, extensões elétricas, fios elétricos, adaptadores para tomadas elétricas, fios com plugs para DVD´s, televisores e equipamentos multimídia em geral, voltímetros e amperímetros de diversos tipos, mangueira com esguicho para jardim e usos diversos, garrafa térmica, silicone spray para limpeza e embelezamento de veículos, equipamento para fazer conexão entre baterias (para dar partida no carro quando a bateria descarrega), mangueira com indicador de volume para botijão de gás, DVD player portátil com tela (para assistir sem conexão com TV), bomba manual para injeção de graxa lubrificante para suspensão de veículos, camisas pólo Lacoste, farda e avental para doméstica, tapetes de borracha e plástico para veículos, calções coloridos (pareciam de pijama), abajur elétrico, escova para tirar pelos de roupa (este eu perguntei, nunca tinha visto antes, é um cilindro com cabo central, lembra escovas para alisar cabelo ou cachear cabelos femininos), lacre plástico, destes que se usa como algemas ou para lacrar malas em aeroportos (usados aqi como segurança para evitar roubo de calotas de carros), bolas transparentes com luzes dentro (do tamanho de bolas de ping-pong, deve ser brinquedo para crianças), bonés, revistas Caras e outras, iogurte em potes plásticos (perguntei o que era, não dava para saber), vassouras domésticas diversas, machados pequenos de lâmina simples, dupla e amassador de carne com lâmina de machado num dos lados, cafeteira elétrica, tostadeira, grill para sanduíches, escova com cerdas de nylos para uso diverso, banco plaástico, facão, blocos tamanho A4 com faturas e recibos avulsos,, ferro de engomar, escova para lustrar sapatos, balança para alimentos, canivete tipo suísso, abridor de garrafas com saca-rolhas, antenas internas para TV, luva para motorista, uniforme de time de futebol (camiseta e calção), lanternas especiais com bateria recarregável (perguntei, nunca havia visto antes, são usadas em casa quando falta energia e parecem pequenos refletores presos numa placa prateada, mais o menos 20 cm x 10 cm), azeite de oliza, caixas (latas) de biscoitos de luxo, umas bolas que parecem bolas de vôlei nas cores, mas do tamanho de bolas de basquete (parecem servir para enfeite ou brincadeira de crianças).


O que se vende nas rua em Luanda I

Num dos últimos escritos fiz referência ao que era vendido nas ruas de Luanda. Na segunda-feira, para passar o tempo enquanto ia para o escritório, resolvi registrar o que eu consegui identificar sendo vendido, EM UM ÚNICO engarrafamento. Aqui vai: cartão telefônico, biscoitos, jornais, brinquedos diversos para crianças, duchas metálicas (isto mesmo) para chuveiro, CD´s, DVD´s, aspiradores de pó, sapatos femininos de salto alto, lençóis, edredons, travesseiros, coleiras para cães, estetoscópios com tensiômetro, sandálias, tênis, ferro de engomar roupa, pedaços de bacalhau em sacos, liquidificadores, ferramentas –alicates de diversos tamanhos e funções, chaves de fenda e outros em estojo plástico, cortadores de unha, cabides de madeira para roupa, mangueira e registro para botijão de gás, capas para volante de automóvel, camisas tipo t-shirt, vestidos, casacos masculinos para frio, camisetas com faixa reflexiva para ciclistas e motociclistas, chaves de roda, macaco hidráulico e triângulo de sinalização para automóvel, celulares e carregadores de celular para ligar na tomada do carro, baterias diversas para eletrodomésticos, lápis, caneta, inseticida spray, relógios grandes de parede, rádio-relógio digital, cadeados, funis para colocar combustível no veículo, armários para sapatos, baús para roupas, tapetes, lonas plásticas, tubos de cola, carteiras de cédulas, espelho para banheiro (com aproximadamente 1m de largura!!!) com suporte para toalha. Isto sem contar o que eu não consegui identificar, o que eu não vi e o que não consegui registrar! Para concluir, o tráfego hoje estava bastante light. Em (apenas!) uma hora fiz um trajeto que costuma durar mais 30 ou 45 minutos. Explicação: diferentemente da maioria das cidades que conheço, em que a segunda-feira é sempre dia muito intenso e com engarrafamentos maiores, aqui costuma ter tráfego mais leve porque diversas feiras livres que funcionaram no domingo não funcionam na segunda, razão pela qual há menos fluxo de pessoas e carros. Morrendo e aprendendo!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Do Lubango ao Namibe, passando pela Serra da Leba e Deserto de Moçâmedes II


A Serra da Leba é algo que não se traduz em palavras, tem que ser vivenciado. Parece uma daquelas paisagens que a gente vê no cinema e fica pensando se é real ou efeito de computação gráfica. O eterno Cacimbo que mantém o céu permanentemente enevoado torna a vista meio difusa, aumentando o fascínio da paisagem. Antes do descida propriamente dita, existe um mirante à esquerda, um paredão com centenas de metros suspenso no nada do qual se vê a estrada que serpenteia pela serra até onde as nuvens (sim, nuvens) bem lá embaixo, deixam o olhar ir, como se pode observar nas duas fotos abaixo.
Deste mirante se vê uma queda d´água à direita, meio escondida entre dois despenhadeiros verticais, que formam um “V”. A estrada que passa pela serra foi construída por uma arquiteta portuguesa sobre um caminho antigo que era usado pelos habitantes que viajavam entre o Namibe e Lubango, pelo alto dos picos.


Desta forma. Ou se tem um despenhadeiro de cada lado da estrada ou um despenhadeiro de um lado e um paredão rochoso do outro.

Reza a lenda, segundo me contou o companheiro angolano e guia Ivo que depois de ver tantas empresas falirem durante a construção da estrada e tantas pessoas morrerem, ela teria se suicidado. A pista não deve ter nenhum trecho com mais de cem metros em linha reta. Para atenuar a descida, a cada pequeno trecho, uma curva. Desta forma, os aproximadamente 2000 metros de altura entre a parte alta e a baixa são vencidos por uma estrada de 23 quilômetros, ou seja, cada quilômetro de estrada corresponde a menos de 100 metros de altura, motivo que explica o enorme número de curvas para reduzir o aclive, algumas com proteção, como a da foto acima, muitas apenas com a fé do viajante para evitar a queda em caso de derrapagem. Depois de quase uma hora de descida com curvas o tempo todo, a paisagem começa a mudar, o terreno fica mais plano e pedregoso, com plantas mais ralas e rasteiras. É que estamos nos aproximando do deserto.


Abaixo, mais algumas paisagens da serra.




Ao lado pode-se ver um tremendo paredão que desce vertical, tão alto que não dá para enquadrar completamente na distância em que nos encontramos. Mas é impressionante, parece que pegaram um serrote gigante e cortaram um pedaço do morro através do granito. Cabe salienar que este trecho é formado naturalmente pela erosão, e não escavado para construir a estrada.




Exemplo de um dos inúmeros trechos em que os veículos ficam espremidos entre um muro natural, neste caso com uma estrutura de concreto suportando a faixa de estrada logo acima, e o precipício do outro lado, neste caso, felizmente, com uma proteção (mas que só existe na parte baixa).

O que se vende na rua em Luanda I




Num dos últimos escritos fiz referência ao que era vendido nas ruas de Luanda. Na segunda-feira, para passar o tempo enquanto ia para o escritório, resolvi registrar o que eu consegui identificar sendo vendido, EM UM ÚNICO engarrafamento. Aqui vai: cartão telefônico, biscoitos, jornais, brinquedos diversos para crianças, duchas metálicas (isto mesmo) para chuveiro, CD´s, DVD´s, aspiradores de pó, sapatos femininos de salto alto, lençóis, edredons, travesseiros, coleiras para cães, estetoscópios com tensiômetro, sandálias, tênis, ferro de engomar roupa, pedaços de bacalhau em sacos, liquidificadores, ferramentas –alicates de diversos tamanhos e funções, chaves de fenda e outros em estojo plástico, cortadores de unha, cabides de madeira para roupa, mangueira e registro para botijão de gás, capas para volante de automóvel, camisas tipo t-shirt, vestidos, casacos masculinos para frio, camisetas com faixa reflexiva para ciclistas e motociclistas, chaves de roda, macaco hidráulico e triângulo de sinalização para automóvel, celulares e carregadores de celular para ligar na tomada do carro, baterias diversas para eletrodomésticos, lápis, caneta, inseticida spray, relógios grandes de parede, rádio-relógio digital, cadeados, funis para colocar combustível no veículo, armários para sapatos, baús para roupas, tapetes, lonas plásticas, tubos de cola, carteiras de cédulas, espelho para banheiro (com aproximadamente 1m de largura!!!) com suporte para toalha. Isto sem contar o que eu não consegui identificar, o que eu não vi e o que não consegui registrar! Para concluir, o tráfego hoje estava bastante light. Em (apenas!) uma hora fiz um trajeto que costuma durar mais 30 ou 45 minutos. Explicação: diferentemente da maioria das cidades que conheço, em que a segunda-feira é sempre dia muito intenso e com engarrafamentos maiores, aqui costuma ter tráfego mais leve porque diversas feiras livres que funcionaram no domingo não funcionam na segunda, razão pela qual há menos fluxo de pessoas e carros. Morrendo e aprendendo!

domingo, 22 de agosto de 2010

Do Lubango ao Namibe, passando pela Serra da Leba e Deserto de Moçâmedes I


Os meus andares por Angola desta vez me levaram ao Sul do país, às igualmente agradáveis porém extremamente distintas localidades de Lubango e Namibe. Entretanto, por mais interessantes que sejam as cidades, a cena é definitivamente roubada pela Serra da Leba e pelo Deserto de Moçâmedes. Mas, como diria Jack o Estripador, vamos por partes. Há tantas coisas interessantes a relatar que, se eu não estabelecer um mínimo de disciplina, vou esquecer muitos aspectos que merecem registro. Primeiro, Lubango. A cidade fica na província do Huíla, numa altitude que varia entre os 1700 e 2000 metros. Clima serrano, a temperatura neste período do ano oscila entre os 26 e os 10 graus centígrados mas já atingiu extremos de 1 grau. A serra da Leba domina a cidade. A vista, quando se examina a paisagem ao redor, é sempre atraída por este belo elemento (recuso-me a usar o termo acidente) geográfico que ocupa metade do horizonte visual. Menos cuidada que Benguela ou Lobito, menos urbanizada, possui ruas mais esburacadas, estreitas e (surpresa!) tem até engarrafamento às seis da tarde e às onze da manhã. Tem também seu “Cristo Rei”, na parte mais alta da serra que está voltada para a cidade. Fiquei hospedado num hotel simples porém de extremo bom gosto chamado Casper Lodge ou Chalé do Gasparzinho (aceitam-se correções). Na entrada, um desenho do Fantasminha ilustra a escolha do nome. Pouco acima, literalmente falando já que a cidade se espalha do sopé até quase o topo da serra, um parque belíssimo com árvores de mais 30 metros de altura, muitos pinheiros e eucaliptos, mesas e bancos de alvenaria para quem quiser sentar e ler, bater papo, namorar (vi vários casais), apreciar a paisagem, dar uma corrida. Por incrível que pareça, identifiquei diversos elementos comuns entre Lubango e Vitória da Conquista na Bahia. Altitude, muitos eucaliptos aromatizando o ar, temperatura amena, jeito da população local e até mesmo a Feira Agropecuária e de Negócios com stands diversos e um parque de diversões anexo, no mesmo período do ano. Num dos restaurantes em que fui, o Bela Huíla, obra do irmão de um companheiro recente aqui de Angola, o Ivo, ficou patente que bom gosto e criatividade estão à disposição de quem tiver competência. Local para umas sessenta pessoas, cozinha estilo “aquário” dentro do espaço de atendimento, música ao vivo. A música merece destaque especial. Primeiro, há sempre um microfone sem fio do grupo que se apresenta, à disposição do público. Desta forma qualquer artista “acidental” (e havia muitos) podia fazer parte do espetáculo e este detalhe fazia uma significativa diferença. O repertório, interessantíssimo, mesclava música angolana, brasileira e pop internacional. O da música brasileira foi um capítulo à parte. O Rei foi quem mais contribuiu, com obras que iam da fase de Jovem Guarda, O Calhambeque (pausa – eu, em Angola, numa noite de sexta, numa cidade do interior do país, num restaurante local, banda local, ouvindo música brasileira do Roberto, anos sessenta, cantada por jovens da faixa dos vinte cujos pais eram crianças quando a música foi lançada!) a músicas mais recentes. Extremamente eclético. O ambiente, agradabilíssimo. Comida boa, simples, adega dominada (sempre, por aqui) por vinhos portugueses, alegria, bom humor. Lembro a mim mesmo que cada momento interessante deve ser vivido e percebido nas suas diversas dimensões. O segundo elemento desta narrativa, a Serra, está entre Lubango e Namibe, vai dos 2500 metros até quase o nível do mar, possui uma estrada que serpenteia por cima do topo dos morros tendo sempre um paredão de um lado e um precipício (e bota precipicio!) do outro, fascinando por mais de 20 quilômetros os que têm o privilégio de a conhecer. Quando o Victor e o Ivo, meus companheiros de jornada e anfitriões, me levaram ao mirante de onde se vê a maior parte da estrada que serpenteia serra abaixo, me surpreendi gritando (muito raramente falo palavrão) P!!!! Q!!!!!P!!!!! Estava diante de um espetáculo belíssimo, quase assustador. Continuo na próxima, a narrativa é longa.

Casa Nova, Talatona & Outros


Após mais de um mês em hotéis, finalmente estou num espaço só para mim. Por melhor que seja um hotel e por melhores que sejam seus serviços, nada supera a sensação de ter seu canto, ter lugar para as suas coisas, poder andar à vontade, não ficar confinado no quarto ou (a outra alternativa) compartilhar o espaço comum com desconhecidos. Um hotel, para mim, é sempre impessoal. A casa nova é muito boa, espaçosa e fica na parte nobre de Luanda, o bairro de Talatona, projetado e belissimamente construído pela Odebrecht. Fico aqui nesta casa bonita, grande, imaginando como será o dia em que ela estará cheia de sons, risos, barulhos de discussão, vida, enfim. Olho a churrasqueira e sonho com as picanhas beeeemmm mal passadas que o Sê gosta, ao ponto para o Lê e a Léri. Vou na versão local da Perini, a Casa dos Frescos (não, não é um espaço gay) e fico pré-selecionando o que vou comprar quando a turminha estiver de novo comigo, admirando cortes de carne que não conhecia (a maioria de origem portugesa), experimentando coisas novas. A última foi hambúrguer de atum (apenas razoável). Fico fazendo planos de quais atividades inventarei para que os pentelhos eternamente irrequietos não se cansem logo e fiquem entediados. Quando estou num restaurante e gosto de um prato, registro mentalmente para trazer a família aqui e pedir para eles. Uma das mais recentes descobertas é uma franquia portuguesa que serve Bife da Vazia, de Lombo, Caldo Verde, Prego, Bitoques, Espetadas de Frango e outras iguarias de nome estranho. Se não for sonhar demais, espero também mostrar estas descobertas ao Niro, ao sogrão e à grande sogra, ao tio Léo. Como nada é perfeito, agora enfrento o famoso engarrafamento de Luanda e levo mais de hora e meia para chegar ao trabalho, outro tanto para voltar, a não ser que resolva deixar o escritório após as oito da noite ou saia de casa às cinco da manhã, o que muitos fazem. Fico pensando em como aproveitar este tempo e uma das alternativas que imaginei foi comprar algum curso digital e aprimorar meu inglês. Enquanto não decido, para distrair e passar o tempo, ouço alguns dos poucos CD´s de música brasileira de qualidade que consegui comprar no (por enquanto) único shopping e vou registrando as peculiaridades da cultura local. Uma delas é o comércio de rua, no sentido literal. Não estou falando de camelôs com suas barracas ou tabuleiros nas calçadas e sim de pessoas que circulam entre os carros em movimento e oferecem praticamente de tudo. Já pensei em fazer uma lista, mas ainda não comecei. Entretanto já vi oferecerem aos motoristas (vou desprezar o óbvio que também se faz no Brasil, como DVD´s piratas, balas, água, óculos e outros itens pouco imaginativos), pasmem, galões de combustível, botijões de gás, estetoscópios, macaco hidráulico para carros, linguiça, peixe seco, chave de roda, balança digital, mapas múndi, quadro para aulas com os respectivos apagadores e “Pilots”, mobiliário para residências, equipamentos eletrônicos diversos, frutas, cervejas, lanternas. Eu, particularmente, comprei uma escova para lustrar sapatos. A propósito, se pagar o primeiro preço que lhe informarem, corre o risco de desembolsar até o dobro do valor real. Não é desonestidade. A barganha e o negociar fazem parte da cultura de muitos povos, como os árabes e os angolanos. É só questão de aprendizado, adaptação e disposição para entender o diferente.
PS. Respondendo a questionamentos feitos no Blog e por e-mail, qualquer pessoa pode incluir link para este espaço ou reproduzir os textos, desde que fazendo referência à fonte: “Blog Diários de Angola”

sábado, 7 de agosto de 2010

De Luanda a Lobito passando por Benguela e babuínos

Tive que viajar a Benguela. Possivelmente herança do longo e recente período de guerras encerrado há menos de uma década, a burocracia nos aeroportos é maior que aquela à qual estava habituado. Logo à entrada há um funcionário que dá (ou não) acesso ao salão. Em frente ao balcão de check in outra pessoa que confere minha passagem, dá uma carimbada e me encaminha para o check in a (distantes) dois metros, imediatamente atrás do primeiro balcão. Passaporte e bagagens verificados, é a vez dos funcionários encarregados de passar os volumes no aparelho de raio x. Depois, outro balcão, de emigração, onde minha passagem e documentos são novamente verificados. Mais uma checada antes de ser autorizado a embarcar na aeronave. E é um voo doméstico! Tive sorte e desta vez o atraso foi de apenas quarenta minutos, na ida e uma hora e dez na volta. Tão pequenos que ninguém sequer pareceu reparar, muito menos se dar ao trabalho de reclamar. Ao desembarcar do avião, um susto. Perguntei onde estava e responderam: Catumbela. Tomei o avião errado, pensei, já que devia desembarcar em Benguela. Calma, explicaram, o aeroporto de Benguela está em obras e saltamos neste distante 15 minutos da cidade. Nas pistas MIGS protegidos por capas nos bicos das aeronaves lembravam mais uma vez o passado bélico a que me referi e que tantas dores causou a este povo sorridente. Benguela é uma cidade extremamente agradável, limpa, de ruas largas, litorânea, pouco movimentada, casas estilo colonial, geralmente bem cuidadas. Em nada lembra o caos de pessoas, carros, ruídos e odores de Luanda. À tarde, apesar de a temperatura em nada lembrar o estereótipo de calor africano, algo em volta de uns 22º, frio, portanto, crianças em roupas de baixo brincavam nas areias da praia, estudantes passeavam de mãos dadas em frente à casa do governador, um time de futebol feminino fazia ginástica num terreno de barro ao lado de uma escola. Nesta mesma jornada fui até Lobito, um dos maiores, talvez o maior porto de Angola. Cidade um pouco menos bem cuidada que Benguela, mas também muito bonita, com prédios coloniais lindíssimos e uma característica bem peculiar. Um braço de terra de uns duzentos metros de largura, em média, invade o mar por alguns quilómetros e cria um quebra-mar natural. Do lado externo, mar aberto, do lado da costa, um trecho de uns trezentos a quatrocentos metros de canal, entrada para o porto que fica na parte mais interna e protegida. Sobre esta faixa de terra, belos hotéis, restaurantes, residências. Entre Benguela e Lobito traços da cultura local, como casas feitas da mesma argila do chão, sem pintura, tornando meio indistintas as fronteiras entre onde termina o chão e começam as paredes. Ideogramas chineses, cada vez mais frequentes em Angola, registram a presença daquele país na reconstrução daquela que foi uma das mais importantes vias da África e seguramente a mais importante deste país – a ferrovia que ligava o Atlântico, a partir de Lobito, ao Oceano Índico, do lado oposto do continente africano. O trecho local tem reinauguração prevista o próximo ano. Em alguns trechos ao longo dos “caminhos de ferro” como é chamada a ferrovia aqui, muitas centenas de pessoas em feiras livres nas quais se vende de comida a peças de automóveis passando por vestuário. Um engarrafamento incomum para o horário –umas três e meia da tarde-, revela outra peculiaridade. Um grande comboio ocupando centenas de metros da rodovia, com muitas candongas, motos, carros particulares, caminhões, a maioria dos quais com o pisca-alerta ligado, ainda que seja dia, seguem um carro fúnebre em direção ao cemitério local, que fica ao lado da estrada. Uma última esticada para conhecer a Baía Azul, zona de veraneio contígua a Benguela, belíssima, mas totalmente diferente das praias do Brasil. Aqui a areia parece misturada com a argila e não tem a brancura a que nos acostumamos. É diferente, mas não menos bonito. O céu, totalmente encoberto já há mais de um mês (o famoso cacimbo) faz com que o sol mais se pareça com uma lua e possa ser olhado diretamente sem proteção para os olhos, e sem machucar a vista. Para concluir, no retorno à cidade, um bando de babuínos, com uns cinquenta ou mais indivíduos, se desloca do lado esquerdo da pista, depois muitos deles cruzam a estrada uns trinta metros à nossa frente, alguns com os filhotes agarrados nas costas. Abaixo, fotos de alguns destes registros. Na seqüência: 1) As construções que parecem emergir do chão de argila; 2)Belíssima ponte, réplica de uma que existe em Portugal,entre Benguela e Lobito; 3)Foto do porto, tirada do quebra-mar natural; 4)Carro funerário improvisado e parte do seu cortejo; 5)A Baía Azul e sua aparência real nesta época do ano, sob o manto do cacimbo; e 6) Babuíno atravessando a estrada.











Paciência


Diferentemente do que o título possa sugerir, não é nenhuma exortação a esta qualidade tão necessária nem nenhuma “tirada” preconceituosa que tantos têm ao se referir às coisas da África. Paciência é o nome do rapaz que cortou meu cabelo hoje. Calma, ou melhor, paciência que eu explico. Cheguei cedo ao salão e em poucos minutos um negro simpático, sorridente, bigodinho à la Errol Flynn (ver Google), cabeça raspada a navalha, informou-me que estava disponível. Antes de explicar-lhe como queria meu corte, já que era a primeira vez que nos encontrávamos, perguntei-lhe como se chamava, pois prefiro tratar todas as pessoas com quem vou ter relação pessoal ou profissional pelo nome. - Paciência, respondeu. – Que interessante, tive um colega no Brasil cujo apelido também era Paciência, expliquei-lhe. Lá na minha terra, a Bahia, havia uns biscoitos amarelos, pequenos, achatados, muito gostosos chamados paciência. Como este meu colega gostava e comia muito estes biscoitos no lanche, ficou o apelido. – Mas Paciência é o meu nome mesmo! - Nome? Como assim? Aí o Paciência, com toda a idem, explicou-me que era originário do Uíge, norte de Angola, onde teria começado a nação angolana. A sua etnia, os Bakongo, são muito supersticiosos, e acreditam muito nas tradições. Ele me contou que lá pode-se ver árvores que vertem sangue, na floresta, ou casas que aparecem da noite para o dia, sem que nenhuma pessoa tenha movido uma palha para construí-las, e ninguém sabe explicar como. Mas a tradição, insiste, é coisa muito importante e não pode acabar nunca. Uma delas determina que para uma mulher casada engravidar, ou, se ela estiver grávida, para a gravidez ser bem sucedida, o marido deve dar-lhe de presente um cabrito. O seu pai não dava de presente à esposa o tal cabrito. Assim, continuou o Paciência, a mulher do seu pai, ficava com a barriga grande, mas como não ganhava o cabrito, a barriga murchava, e nada de gravidez. Outra vez a barriga começava a crescer, mas ele não dava o cabrito e a barriga murchava de novo. – Que pedaço do cabrito deveria ser dado, perguntei, achando que alguma parte da anatomia do bicho deveria estar relacionada com aspectos de saúde da grávida. – O cabrito inteiro, respondeu-me. – Mas era um cabrito abatido, para ser cozido e comido? – Não, era um cabrito vivo, para a mulher fazer o que quisesse. Depois desta interrupção, o Paciência continuou, pacientemente a discorrer. – Mesmo sem ter recebido o cabrito de presente, depois de nove anos, ela engravidou. Quando eu nasci, meu pai então me explicou que ele esperou nove anos, sem casar com outra mulher, sem se separar, aguardando, pacientemente que a esposa engravidasse. Desta forma eu sou resultado da paciência dele. E ele me contava esta história sempre, e sorria muito, lembrando o quanto foi paciente para esperar por mim. Assim, escolheu meu nome, concluiu. Fiquei pensando, batutando cá com os meus botões. Se eu aplicasse a mesma lógica do pai dele, que nome será que teriam meus filhos? Acho que o Niro se chamaria “Surprêêêsaaa!!!!”. O Sean seria, “Mô, senta, que eu tenho uma novidade!!” e o Levi, “Mô, senta que eu tenho outra novidade!!”. Pensando bem, o pai do Paciência fica com a lógica e as tradições dele e eu fico com as minhas. É melhor.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Flashes I


Algumas questões por aqui ainda me surpreendem. A nossa Coordenadora Administrativa, a Patrícia, trouxe-me seu requerimento para saída de férias. Sempre estranhei que o e-mail dela fosse mariana.sardinha, mas achei que como em muitos outros casos, o nome escolhido para o endereço eletrônico fosse um dos seus nomes menos conhecido pelos colegas. Não. A Patrícia chama-se, de fato, Mariana. Descobri, de quebra que a Neuza (a Patrícia entregou logo para não ficar parecendo a única estranha do pedaço), outra colega do escritório, também não se chama Neuza, mas Elza. Perguntei por que. Ela ia se chamar Mariana Patrícia. O tabelião, muito sabiamente, achou que não ia ficar bem e se negou ao registro (em verdade a alegação foi a de que eram muitos nomes não angolanos para uma única pessoa). Como um nome era da preferência do pai e o outro da mãe, cada um continuou chamando-a como achava melhor e prevaleceu exatamente o nome descartado da certidão. A história da Neuza é parecida. Soube que isto por aqui é muito comum. Outro fato que me chama constantemente a atenção é a lógica do luandense (outras cidades de Angola são completamente distintas de Luanda, que comporta 30% da população do país exatamente na menor província) ao dirigir seus carros no dia-a-dia. Normalmente o trânsito daqui é altamente democrático. Estão no mesmo engarrafamento carrinhos pequenos, econômicos, muitos caindo aos pedaços, candongas, meio de transporte de massa (pequenas peruas) e Land Rovers, Hummers, BMW´s e outros carros de altíssimo luxo. O caos é total e totalmente organizado, ou seja cada um vai forçando a barra, enfiando a frente do seu carro enquanto pode e milímetros antes do choque, por uma lógica completamente clara para eles (e só para eles), um cede passagem e o outro vai em frente sem problemas. Raras são as buzinas e mais raras ainda as discussões. A estoicidade e o fatalismo são quase budistas. Nos fins de semana e de noite, entretanto, quando o trânsito é muito mais livre e pode-se desenvolver velocidades de 60, 80 por hora, qualquer detalhe que pareça em desacordo com que acha outro motorista provoca buzinadas homéricas e reclamações veementes. O stress é infinitamente maior quando o tráfego é livre… Para concluir a lógica totalmente distinta da brasileira no quesito trânsito, mesmo em avenidas expressas, de velocidade e altamente movimentadas, basta que algumas pessoas no acostamento ou no passeio comecem a estender a mão pedindo passagem ao lado da pista e, em segundos, um carro pára, os demais acompanham e as pessoas passam. Nunca vi reclamações, freiadas ou buzinadas, nestas horas. Nunca vi nenhum motorista que viesse atrás de outro que parou e que também não parasse e desse passagem à pessoa ou pessoas que a pediram. Os nomes das coisas, muitos originários do português de Portugal, outros mangoleses típicos, são um capítulo à parte. Luz interna, como abajur, luminária para leitura e outros que dão luminosidade localizada, são candeeiros. Sanduíche é sand, geladeira é geleira, bacana, legal é fixe, caminhonete é carrinha, freio é travão, retorno é bolacha, rótula é rotunda, caminhão é camião, gramado é relvado, faixa de pedestres é passadeira, trecho em obras é troço em obras, garoto, garota, miúdo ou miúda, jovem é puto, coroa é cota, pistolão (conhecido que favoreceria um amigo) é cunha, chopp é fino, gol é golo, goleiro é guarda-metas e o sanduíche mais comum aqui, feito com carne de boi é prego no pão (ninguém nunca me explicou porque, já pesquisei e não descobri). Para encerrar, chamam-me muito a atenção as crianças, as suas mães e suas relações. A maioria das mulheres da população típica, carrega as crianças amarradas às costas por um pano parecido com um xale, as pernas das crianças à volta da cintura das mães, numa posição, aparentemente desconfortável. Especialmente se considerarmos que elas ficam ali por horas a fio, enquanto a mãe anda, almoça, trabalha, carrega outras coisas, ou simplesmente se agacha num canto para descansar. Pois bem, nunca vi nenhuma destas crianças chorando, mostrando irritação, reclamando ou mesmo tentando chamar a atenção da mãe. Ficam ali quietinhas, olham placidamente para os lados, às vezes comem algo, numa total tranquilidade. Em um mês por aqui, uma única vez lembro-me de ter visto um garotinho chorar, mas apenas porque outro maior o estava pirraçando. Comentando isto com um amigo, este falou que nos seus anos de Angola, nunca viu uma criança fazer uma cena, nem nunca viu uma mãe batendo numa criança. Eu nunca vi uma mãe nem reclamando com seu filhote, muito menos brigando, menos ainda ameaçando ou batendo. Último exemplo da diferença de temperamento aparente das crianças daí e daqui: estava no cinema, assistindo uma comédia de aventuras adequada para crianças de pelo menos uns dez ou mais anos (legendada, requereria leitura fluente), quando percebi que muitas mães adentravam na sessão, já iniciada, com uma, duas, até três crianças com idade bem menor que a desejável, algumas seguramente ainda não alfabetizadas. Sala cheia, as mães foram deixando as crianças nos bancos que estavam vazios, não necessariamente próximos a elas. Uma sentou na mesma fila que eu, porém distante, e deixou o garotinho de uns cinco ou seis anos na cadeira ao meu lado. Já me preparei para as chamadas à mãe, reclamações por ter que ficar por mais de uma hora e meia vendo um filme que não fazia sentido para ele. O guri não deu uma única palavra, e do meio para o final do filme, encolheu as perninhas para cima da cadeira e as colocou debaixo da camisa, com frio. Recostou-se e cochilou, sem uma único som, quietinho, pelo resto da sessão. Parecidíssimo com os meus!!!