domingo, 19 de setembro de 2010

Saudades From Angola II


Aqui é do outro lado do oceano. O mar, que me indicava o leste, fica a oeste. Mudam também outras referências. Aqui minha casa não é porto. Não anseio em voltar depois da tempestade. O dormir é solitário. Percebi, depois de meses, que mesmo tendo toda a cama só para mim, ocupo apenas uma metade. A esquerda. Isto não mudou. Mudaram os sons e as cores, o ritmo da vida. O céu, permanentemente nublado pelo cacimbo não exibe aquele contraste entre um azul vivo e o branco algodão das nuvens. Também não chove. Há dois meses não sinto aquele cheiro de terra molhada, aquele vento mais forte, aquele cinza chumbo que cobria o céu, os trovões. Não vejo as nuvens escuras que sempre se aproximavam a partir do mar de Itapoan, brindando-me com um espetáculo sempre igual, sempre renovado, sempre renovador. Aqui o vento sopra do continente para o oceano e mesmo próxima ao mar a paisagem é ressequida. Os padrões de beleza têm que ser reaprendidos e o aprendizado é lento e doloroso. Aqui conheci desertos. Uma imensidão de igualdade perturbadora, sem pontos de referência, onde se pode morrer facilmente. Não há árvores, não há pedras, não há elevações, não há vida, não há sons e nem sombra. É de uma monotonia enlouquecedora. Ontem me mostraram uma flor local, lindíssima, chamada Rosa de Porcelana. Dizem que pode ser cortada e enviada para alguém e permanece viçosa por muito tempo. Suas cores são matizes de vermelho. Sua consistência é tão firme quanto a de uma flor artificial. Nunca tinha visto nada igual. Ontem comi e bebi vinho com novos amigos. Compartilhei da sua hospitalidade. Brinquei com seus filhos. Diverti-me e sorri bastante. Depois voltei ao hotel. Hoje descobri que no domingo a tv local também exibe o Globo Rural. Assisti contente qual criança ao descobrir que ganhou um brinquedo novo. Fiquei feliz. Depois o Renato Teixeira foi entrevistado e cantou Romaria e outras coisas lindas que falam de um Brasil que já era distante quando eu estava aí. Tocou sua viola caipira, um som agudo, metálico, pungente. Evocou lembranças indistintas. Fiquei feliz de novo. Daqui a pouco devo falar com a esposa e os filhotes por telefone. Possivelmente a sogra e o sogro vão estar por perto. Vou falar com eles também. Não devo perder oportunidades. Vou ficar feliz mais uma vez. Permaneço atento. A felicidade e a alegria têm que ser trabalhados a cada passo. É difícil, mas o simples exercício já ajuda. Lembro recorrentemente de um verso do Jorge Vercilo. ”Ela está em todas as coisas, mesmo no vazio que me dá”. Tenho a pretensão, ou mais provavelmente a necessidade de crer que entendo exatamente o que ele quer dizer.

domingo, 12 de setembro de 2010

Trilhas Sonoras


A distância da família causa transformações em diversos aspectos e formas de ver a vida. Por exemplo, hoje, daqui de longe, morrendo de saudades e disposto a perdoar qualquer coisa, acho que sempre fui rigoroso e intolerante demais com o Sean e o Levi, e fico me prometendo que vou mudar mas com medo de que ao voltar ao convívio com eles minhas ranhetices se sobreponham a esta disposição e eu volte ao “normal”. Outra dimensão, que deu origem a este escrito em particular, é a relação com a música. Aí era diversão. Aqui é necessidade visceral. A musica brasileira aqui é ubíqua. Os sucessos são das mais variadas épocas e até Moreira da Silva é muito ouvido e citado e as pessoas se surpreendem porque não identifico suas músicas. Só conheço aquela do famoso Kid Morangueira e outra em que ele começa reclamando na subida do morro de que o sujeito bateu na nêga dele e termina enfiando a navalha na barriga do agressor. Os hits aqui têm muito a ver com as novelas brasileiras que estão no ar, e sucessos bastante antigos às vezes são bastante atuais em Angola. Além destas sazonalidades, algumas super estrelas são permanentes, como Ivete, Daniela, o eterno Rei. Aliás, só os discos do Roberto representam metade das opções da loja do shopping. Para mim, a nossa música me ajuda a superar a solidão, às vezes acentua as saudades e sempre distrai no eterno engarrafamento. Há entretanto alguns momentos em particular que se destacam. Primeiro, na viagem para o Namibe, descendo a obra de arte natural que é a Serra da Leba, com Victor e Ivo, ambos apaixonados pela nossa música. Este último colocou o disco dos Tribalistas para tocar e eu fui ouvindo a voz melodiosa da Marisa e os tons guturais do Arnaldo em meio a músicas que transformavam o ambiente, já surreal, em quase divino. Montanhas, precipícios, deserto, e a Marisa encantando “meu melhor amigo é o seu querer”. Foi um momento muito legal, especial. Na volta, total reviravolta de estilos. O Ivo, talvez motivado pela solidão e quietude do deserto, me sacou um disco pirata com mais de quarenta músicas, cada uma contando uma história de sofrimento mais trágica que a outra e ouvi Nilton César cantando “receba as flores que lhe dou”, Reginaldo Rossi explicando ao garçom que todo bêbado é chato, mas que ele tinha o direito a se embebedar e cair, pedindo que, neste caso, o deixassem dormir no chão. Um outro cantor, totalmente desconhecido para mim, explicando que quem faz o mal tem que ir para o inferno e que ele estava sofrendo justamente porque fez sofrer à esposa, e que Deus tinha mesmo que castigá-lo. Em especial no caso do tal Nilton César, quem parecia estar sendo castigado era eu, porque quando criança tinha uma vizinha insuportável, que obrigava toda a redondeza a ouvir o mesmíssimo (do Nilton) disco o dia todo, repetindo-o quando chegava ao fim. Foi muito engraçado. O Ivo contou que Gilson, meu amigo desde sempre, já havia feito três cópias do disco, uma das quais deu a um cunhado, o qual, quando ouviu a música do tal que queria mesmo sofrer por ter feito maldades com a esposa, chorou feito menino, tomou todas e passou o domingo bêbado (apesar do incomum gosto para presentes, Gilson tem diversos outros predicados, daí sermos amigos há tanto tempo). Rimos muito os três, e o Ivo conhecia todas as letras. Pouco mais de uma semana depois viajamos eu e Victor de Luanda até Benguela e desta vez a experiência lembrou a da Serra, fase I (tribalistas). Havia no carro uma coleção inteira do Chico e eu, no meio de estradas que misturavam mar de um lado, savanas e montanhas do outro, ouvia a poesia belíssima do brasileiro que mais entende de mulher cantando músicas da Ópera do Malandro, Bye Bye Brasil, Com Açúcar Com Afeto e outras maravilhas. Foi mais uma experiência fantástica. Entretanto, além destes momentos especiais pontuais, há a minha trilha sonora cotidiana, o que ouço em casa e no carro. Em casa a Vanessa da Mata me encanta com Amado, me pirraça e põe o dedo na minha ferida (a inseparável solidão) quando declama os versos “ainda bem, que você vive comigo, porque senão, o que seria da vida, sei lá, sei lá”. No carro a Marisa se incumbe de fazer o mesmo quando lembra a falta da companheira, a Léri, dizendo que não é fácil não te ter todo dia, não te contar meus os planos, não te encontrar. Há também momentos mais amenos, quando o Vercilo, Chico, Roberto e Caetano cantando Tom, Marina, me transportam para lugares de tranquilidade, me trazem sentimentos bons, me recordam experiências felizes, enfim, me ajudam a superar. Por coincidência ontem fui com amigos a um bar próximo de casa com música ao vivo e ouvi a baiana Márcia Short, surpreendentemente, cantando Rio Antigo, do Chico Anísio, Como Dois e Dois do Caetano e outras pérolas. Prá não deixar barato, já que tudo estava perfeito demais, terminou com o reboleixon (é assim que se escreve?). Mas foi só esta em mais de uma hora de show. E como estou numa fase mais magnânima, dá pra perdoar.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Do Lubango ao Namibe passando pela Serra da Leba III


A Serra da Leba desce de quase dois mil até trezentos metros acima do nível do mar, quando a paisagem começa a mudar e se deixa um terreno com muitas pedras, mas também muita vegetação, muito verde, e começa-se a adentrar num trecho em que a vegetação fica cada vez mais rala, amarelada, baixa e as pedras aumentam. É a transição entre a serra e o deserto. Mais uma meia hora e a vegetação praticamente desaparece.

Sou informado de que aquele trecho é tão inóspito que há noventa quilômetros existe uma pentenciária que não tem (porque não precisa, ninguém sabe para onde fugir) muros. Por mutos e muitos quilômetros apenas as pedras e um chão que não é aquele que nos acostumamos a ver na televisão, nos desertos de Hollywood, de areia fina. O deserto do Moçâmedes é de um chão argiloso, duro, amarelado. De repente o olhar treinado do Victor chama a atenção para algo à esquerda do carro. São babuínos que fogem para o alto de uma gigantesca rocha quando nos aproximamos, tornando-se pouco mais que pequenos pontos quase indistintos.

À nossa frente, um buraco natural na rocha com dois ou três metros de profundidade por uns quatro de diâmetro, guarda ainda um resto da maior riqueza que se poderia encontrar por ali. Um resto de água suja, verde, mas ainda assim, água, num raio de muitos quilômetros, o suficiente para manter aquele bando ali por perto.


Mais uma vez o chão esbranquiçado e sem vegetação retoma a paisagem. Nenhuma planta, nenhuma sombra, nenhuma água, nem mesmo pedras para quebrar a monotonia da viagem.
De repente o Ivo avisa: daqui a pouco vamos passar por um oásis. Vêem me à mente visões árabes com tamareiras, areias, um pequeno lago de águas cristalinas, mas a realidade é completamente diferente.
Do nada, surge uma uma pequena região com vegetação viçosa de ambos os lados da estrada, por um trecho de poucas centenas de metros, o suficiente para que um grupo de pessoas viva ali. Percebe-se pequenas plantações, poucos animais e sinais de vida em comunidade. Esta grande árvore ao lado parece-se bastante com árvores de florestas assombradas de filmes infantis e é única dentre o restante da vegetação. Assim como pouco antes, logo depois o chão seco e áspero retoma a cena. Seguimos por mais uns quinze a vinte minutos e novamente percebe-se a presença de água, ainda que em meio ao ambiente hostil. Estamos nos aproximando da cidade do Namibe, do mar. Namibe é uma cidade pequena, pacata, com um tipo de urbanização completamente diferente de Lubango, vive em função do mar. Seus pratos típicos são deliciosos.
Comi um carangueijo com mais de vinte centímetros de tamanho, com o casco bem mais tenro que os caranguejos brasileiros, de alto mar. Delicioso. No mercado lulas, chocos e peixes diversos estão expostos em balcões e todos os vendedores e vendedoras tentam convencer você de que seu peixe é mais fresco e melhor. A variedade de produtos é impressionante. Vi uns peixes galo que pelo tamanho deviam se chamar aqui de peixe peru. Muito maiores que os do Brasil, pelo menos o dobro do tamanho. Também muitos peixes salgados atendem às necessidades daqueles que têm que fazer longos percursos pela região, sem ter como manter o produto resfriado. Quando se observa bem, percebe-se que o deserto vai até o mar. O Rui, nosso anfitrião local me fala de uma planta carnívora que só existe naquela região, capaz de matar pequenos coelhos e pássaros. Segundo ele, seu interior aveludado é convidativo e os animais se deitam e se aconchegam para escapar do frio. Encontram depois apenas a pele e os ossos ressecados. Fica para a próxima visita.

À esquerda, as lulas, mais distantes, e o choco, maior, molusco muito comum e muito consumido por aqui. Do lado oposto o super peixe galo, com pelo menos uns trinta centímetros de tamanho e bastante grosso em relação ao que costumava ver nas praias e feiras do Brasil. Observem que eles estão numa bacia alta e as cabeças ficam bem acima da borda.


sábado, 28 de agosto de 2010

O que se vende na rua em Luanda II




Como este tema é praticamente inesgotável, decidi que a cada novidade interessante, acrescento o material ao texto anterior e lanço uma nova edição, assim, quem já leu fica apenas na parte inicial do texto, e quem lê pela primeira vez não precisa ir buscar os anteriores para se informar.
Em outras duas passagens pelo mesmo trecho eternamente engarrafado de Luanda na qual se baseou o texto anterior sobre o tema, em uma das principais avenidas que dão acesso ao centro da cidade (Rua da Samba, próximo ao Viaduto do Prenda), registrei alguns novos (outros nem tanto) itens vendidos por ambulantes entre os carros. A propósito, ainda me surpreendo bastante com a ausência de acidentes, já que num espaço apertado entre carros (que disputam acirradamente cada metro de asfalto) passam à toda lambretas e motos a cada minuto, e os condutores e ambulantes conseguem se evitar mutuamente, sabe Deus como. Aqui vão: colchão e poltrona infláveis, ancinho, tesoura e enxadete de jardinagem, extensões elétricas, fios elétricos, adaptadores para tomadas elétricas, fios com plugs para DVD´s, televisores e equipamentos multimídia em geral, voltímetros e amperímetros de diversos tipos, mangueira com esguicho para jardim e usos diversos, garrafa térmica, silicone spray para limpeza e embelezamento de veículos, equipamento para fazer conexão entre baterias (para dar partida no carro quando a bateria descarrega), mangueira com indicador de volume para botijão de gás, DVD player portátil com tela (para assistir sem conexão com TV), bomba manual para injeção de graxa lubrificante para suspensão de veículos, camisas pólo Lacoste, farda e avental para doméstica, tapetes de borracha e plástico para veículos, calções coloridos (pareciam de pijama), abajur elétrico, escova para tirar pelos de roupa (este eu perguntei, nunca tinha visto antes, é um cilindro com cabo central, lembra escovas para alisar cabelo ou cachear cabelos femininos), lacre plástico, destes que se usa como algemas ou para lacrar malas em aeroportos (usados aqi como segurança para evitar roubo de calotas de carros), bolas transparentes com luzes dentro (do tamanho de bolas de ping-pong, deve ser brinquedo para crianças), bonés, revistas Caras e outras, iogurte em potes plásticos (perguntei o que era, não dava para saber), vassouras domésticas diversas, machados pequenos de lâmina simples, dupla e amassador de carne com lâmina de machado num dos lados, cafeteira elétrica, tostadeira, grill para sanduíches, escova com cerdas de nylos para uso diverso, banco plaástico, facão, blocos tamanho A4 com faturas e recibos avulsos,, ferro de engomar, escova para lustrar sapatos, balança para alimentos, canivete tipo suísso, abridor de garrafas com saca-rolhas, antenas internas para TV, luva para motorista, uniforme de time de futebol (camiseta e calção), lanternas especiais com bateria recarregável (perguntei, nunca havia visto antes, são usadas em casa quando falta energia e parecem pequenos refletores presos numa placa prateada, mais o menos 20 cm x 10 cm), azeite de oliza, caixas (latas) de biscoitos de luxo, umas bolas que parecem bolas de vôlei nas cores, mas do tamanho de bolas de basquete (parecem servir para enfeite ou brincadeira de crianças).


O que se vende nas rua em Luanda I

Num dos últimos escritos fiz referência ao que era vendido nas ruas de Luanda. Na segunda-feira, para passar o tempo enquanto ia para o escritório, resolvi registrar o que eu consegui identificar sendo vendido, EM UM ÚNICO engarrafamento. Aqui vai: cartão telefônico, biscoitos, jornais, brinquedos diversos para crianças, duchas metálicas (isto mesmo) para chuveiro, CD´s, DVD´s, aspiradores de pó, sapatos femininos de salto alto, lençóis, edredons, travesseiros, coleiras para cães, estetoscópios com tensiômetro, sandálias, tênis, ferro de engomar roupa, pedaços de bacalhau em sacos, liquidificadores, ferramentas –alicates de diversos tamanhos e funções, chaves de fenda e outros em estojo plástico, cortadores de unha, cabides de madeira para roupa, mangueira e registro para botijão de gás, capas para volante de automóvel, camisas tipo t-shirt, vestidos, casacos masculinos para frio, camisetas com faixa reflexiva para ciclistas e motociclistas, chaves de roda, macaco hidráulico e triângulo de sinalização para automóvel, celulares e carregadores de celular para ligar na tomada do carro, baterias diversas para eletrodomésticos, lápis, caneta, inseticida spray, relógios grandes de parede, rádio-relógio digital, cadeados, funis para colocar combustível no veículo, armários para sapatos, baús para roupas, tapetes, lonas plásticas, tubos de cola, carteiras de cédulas, espelho para banheiro (com aproximadamente 1m de largura!!!) com suporte para toalha. Isto sem contar o que eu não consegui identificar, o que eu não vi e o que não consegui registrar! Para concluir, o tráfego hoje estava bastante light. Em (apenas!) uma hora fiz um trajeto que costuma durar mais 30 ou 45 minutos. Explicação: diferentemente da maioria das cidades que conheço, em que a segunda-feira é sempre dia muito intenso e com engarrafamentos maiores, aqui costuma ter tráfego mais leve porque diversas feiras livres que funcionaram no domingo não funcionam na segunda, razão pela qual há menos fluxo de pessoas e carros. Morrendo e aprendendo!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Do Lubango ao Namibe, passando pela Serra da Leba e Deserto de Moçâmedes II


A Serra da Leba é algo que não se traduz em palavras, tem que ser vivenciado. Parece uma daquelas paisagens que a gente vê no cinema e fica pensando se é real ou efeito de computação gráfica. O eterno Cacimbo que mantém o céu permanentemente enevoado torna a vista meio difusa, aumentando o fascínio da paisagem. Antes do descida propriamente dita, existe um mirante à esquerda, um paredão com centenas de metros suspenso no nada do qual se vê a estrada que serpenteia pela serra até onde as nuvens (sim, nuvens) bem lá embaixo, deixam o olhar ir, como se pode observar nas duas fotos abaixo.
Deste mirante se vê uma queda d´água à direita, meio escondida entre dois despenhadeiros verticais, que formam um “V”. A estrada que passa pela serra foi construída por uma arquiteta portuguesa sobre um caminho antigo que era usado pelos habitantes que viajavam entre o Namibe e Lubango, pelo alto dos picos.


Desta forma. Ou se tem um despenhadeiro de cada lado da estrada ou um despenhadeiro de um lado e um paredão rochoso do outro.

Reza a lenda, segundo me contou o companheiro angolano e guia Ivo que depois de ver tantas empresas falirem durante a construção da estrada e tantas pessoas morrerem, ela teria se suicidado. A pista não deve ter nenhum trecho com mais de cem metros em linha reta. Para atenuar a descida, a cada pequeno trecho, uma curva. Desta forma, os aproximadamente 2000 metros de altura entre a parte alta e a baixa são vencidos por uma estrada de 23 quilômetros, ou seja, cada quilômetro de estrada corresponde a menos de 100 metros de altura, motivo que explica o enorme número de curvas para reduzir o aclive, algumas com proteção, como a da foto acima, muitas apenas com a fé do viajante para evitar a queda em caso de derrapagem. Depois de quase uma hora de descida com curvas o tempo todo, a paisagem começa a mudar, o terreno fica mais plano e pedregoso, com plantas mais ralas e rasteiras. É que estamos nos aproximando do deserto.


Abaixo, mais algumas paisagens da serra.




Ao lado pode-se ver um tremendo paredão que desce vertical, tão alto que não dá para enquadrar completamente na distância em que nos encontramos. Mas é impressionante, parece que pegaram um serrote gigante e cortaram um pedaço do morro através do granito. Cabe salienar que este trecho é formado naturalmente pela erosão, e não escavado para construir a estrada.




Exemplo de um dos inúmeros trechos em que os veículos ficam espremidos entre um muro natural, neste caso com uma estrutura de concreto suportando a faixa de estrada logo acima, e o precipício do outro lado, neste caso, felizmente, com uma proteção (mas que só existe na parte baixa).

O que se vende na rua em Luanda I




Num dos últimos escritos fiz referência ao que era vendido nas ruas de Luanda. Na segunda-feira, para passar o tempo enquanto ia para o escritório, resolvi registrar o que eu consegui identificar sendo vendido, EM UM ÚNICO engarrafamento. Aqui vai: cartão telefônico, biscoitos, jornais, brinquedos diversos para crianças, duchas metálicas (isto mesmo) para chuveiro, CD´s, DVD´s, aspiradores de pó, sapatos femininos de salto alto, lençóis, edredons, travesseiros, coleiras para cães, estetoscópios com tensiômetro, sandálias, tênis, ferro de engomar roupa, pedaços de bacalhau em sacos, liquidificadores, ferramentas –alicates de diversos tamanhos e funções, chaves de fenda e outros em estojo plástico, cortadores de unha, cabides de madeira para roupa, mangueira e registro para botijão de gás, capas para volante de automóvel, camisas tipo t-shirt, vestidos, casacos masculinos para frio, camisetas com faixa reflexiva para ciclistas e motociclistas, chaves de roda, macaco hidráulico e triângulo de sinalização para automóvel, celulares e carregadores de celular para ligar na tomada do carro, baterias diversas para eletrodomésticos, lápis, caneta, inseticida spray, relógios grandes de parede, rádio-relógio digital, cadeados, funis para colocar combustível no veículo, armários para sapatos, baús para roupas, tapetes, lonas plásticas, tubos de cola, carteiras de cédulas, espelho para banheiro (com aproximadamente 1m de largura!!!) com suporte para toalha. Isto sem contar o que eu não consegui identificar, o que eu não vi e o que não consegui registrar! Para concluir, o tráfego hoje estava bastante light. Em (apenas!) uma hora fiz um trajeto que costuma durar mais 30 ou 45 minutos. Explicação: diferentemente da maioria das cidades que conheço, em que a segunda-feira é sempre dia muito intenso e com engarrafamentos maiores, aqui costuma ter tráfego mais leve porque diversas feiras livres que funcionaram no domingo não funcionam na segunda, razão pela qual há menos fluxo de pessoas e carros. Morrendo e aprendendo!

domingo, 22 de agosto de 2010

Do Lubango ao Namibe, passando pela Serra da Leba e Deserto de Moçâmedes I


Os meus andares por Angola desta vez me levaram ao Sul do país, às igualmente agradáveis porém extremamente distintas localidades de Lubango e Namibe. Entretanto, por mais interessantes que sejam as cidades, a cena é definitivamente roubada pela Serra da Leba e pelo Deserto de Moçâmedes. Mas, como diria Jack o Estripador, vamos por partes. Há tantas coisas interessantes a relatar que, se eu não estabelecer um mínimo de disciplina, vou esquecer muitos aspectos que merecem registro. Primeiro, Lubango. A cidade fica na província do Huíla, numa altitude que varia entre os 1700 e 2000 metros. Clima serrano, a temperatura neste período do ano oscila entre os 26 e os 10 graus centígrados mas já atingiu extremos de 1 grau. A serra da Leba domina a cidade. A vista, quando se examina a paisagem ao redor, é sempre atraída por este belo elemento (recuso-me a usar o termo acidente) geográfico que ocupa metade do horizonte visual. Menos cuidada que Benguela ou Lobito, menos urbanizada, possui ruas mais esburacadas, estreitas e (surpresa!) tem até engarrafamento às seis da tarde e às onze da manhã. Tem também seu “Cristo Rei”, na parte mais alta da serra que está voltada para a cidade. Fiquei hospedado num hotel simples porém de extremo bom gosto chamado Casper Lodge ou Chalé do Gasparzinho (aceitam-se correções). Na entrada, um desenho do Fantasminha ilustra a escolha do nome. Pouco acima, literalmente falando já que a cidade se espalha do sopé até quase o topo da serra, um parque belíssimo com árvores de mais 30 metros de altura, muitos pinheiros e eucaliptos, mesas e bancos de alvenaria para quem quiser sentar e ler, bater papo, namorar (vi vários casais), apreciar a paisagem, dar uma corrida. Por incrível que pareça, identifiquei diversos elementos comuns entre Lubango e Vitória da Conquista na Bahia. Altitude, muitos eucaliptos aromatizando o ar, temperatura amena, jeito da população local e até mesmo a Feira Agropecuária e de Negócios com stands diversos e um parque de diversões anexo, no mesmo período do ano. Num dos restaurantes em que fui, o Bela Huíla, obra do irmão de um companheiro recente aqui de Angola, o Ivo, ficou patente que bom gosto e criatividade estão à disposição de quem tiver competência. Local para umas sessenta pessoas, cozinha estilo “aquário” dentro do espaço de atendimento, música ao vivo. A música merece destaque especial. Primeiro, há sempre um microfone sem fio do grupo que se apresenta, à disposição do público. Desta forma qualquer artista “acidental” (e havia muitos) podia fazer parte do espetáculo e este detalhe fazia uma significativa diferença. O repertório, interessantíssimo, mesclava música angolana, brasileira e pop internacional. O da música brasileira foi um capítulo à parte. O Rei foi quem mais contribuiu, com obras que iam da fase de Jovem Guarda, O Calhambeque (pausa – eu, em Angola, numa noite de sexta, numa cidade do interior do país, num restaurante local, banda local, ouvindo música brasileira do Roberto, anos sessenta, cantada por jovens da faixa dos vinte cujos pais eram crianças quando a música foi lançada!) a músicas mais recentes. Extremamente eclético. O ambiente, agradabilíssimo. Comida boa, simples, adega dominada (sempre, por aqui) por vinhos portugueses, alegria, bom humor. Lembro a mim mesmo que cada momento interessante deve ser vivido e percebido nas suas diversas dimensões. O segundo elemento desta narrativa, a Serra, está entre Lubango e Namibe, vai dos 2500 metros até quase o nível do mar, possui uma estrada que serpenteia por cima do topo dos morros tendo sempre um paredão de um lado e um precipício (e bota precipicio!) do outro, fascinando por mais de 20 quilômetros os que têm o privilégio de a conhecer. Quando o Victor e o Ivo, meus companheiros de jornada e anfitriões, me levaram ao mirante de onde se vê a maior parte da estrada que serpenteia serra abaixo, me surpreendi gritando (muito raramente falo palavrão) P!!!! Q!!!!!P!!!!! Estava diante de um espetáculo belíssimo, quase assustador. Continuo na próxima, a narrativa é longa.

Casa Nova, Talatona & Outros


Após mais de um mês em hotéis, finalmente estou num espaço só para mim. Por melhor que seja um hotel e por melhores que sejam seus serviços, nada supera a sensação de ter seu canto, ter lugar para as suas coisas, poder andar à vontade, não ficar confinado no quarto ou (a outra alternativa) compartilhar o espaço comum com desconhecidos. Um hotel, para mim, é sempre impessoal. A casa nova é muito boa, espaçosa e fica na parte nobre de Luanda, o bairro de Talatona, projetado e belissimamente construído pela Odebrecht. Fico aqui nesta casa bonita, grande, imaginando como será o dia em que ela estará cheia de sons, risos, barulhos de discussão, vida, enfim. Olho a churrasqueira e sonho com as picanhas beeeemmm mal passadas que o Sê gosta, ao ponto para o Lê e a Léri. Vou na versão local da Perini, a Casa dos Frescos (não, não é um espaço gay) e fico pré-selecionando o que vou comprar quando a turminha estiver de novo comigo, admirando cortes de carne que não conhecia (a maioria de origem portugesa), experimentando coisas novas. A última foi hambúrguer de atum (apenas razoável). Fico fazendo planos de quais atividades inventarei para que os pentelhos eternamente irrequietos não se cansem logo e fiquem entediados. Quando estou num restaurante e gosto de um prato, registro mentalmente para trazer a família aqui e pedir para eles. Uma das mais recentes descobertas é uma franquia portuguesa que serve Bife da Vazia, de Lombo, Caldo Verde, Prego, Bitoques, Espetadas de Frango e outras iguarias de nome estranho. Se não for sonhar demais, espero também mostrar estas descobertas ao Niro, ao sogrão e à grande sogra, ao tio Léo. Como nada é perfeito, agora enfrento o famoso engarrafamento de Luanda e levo mais de hora e meia para chegar ao trabalho, outro tanto para voltar, a não ser que resolva deixar o escritório após as oito da noite ou saia de casa às cinco da manhã, o que muitos fazem. Fico pensando em como aproveitar este tempo e uma das alternativas que imaginei foi comprar algum curso digital e aprimorar meu inglês. Enquanto não decido, para distrair e passar o tempo, ouço alguns dos poucos CD´s de música brasileira de qualidade que consegui comprar no (por enquanto) único shopping e vou registrando as peculiaridades da cultura local. Uma delas é o comércio de rua, no sentido literal. Não estou falando de camelôs com suas barracas ou tabuleiros nas calçadas e sim de pessoas que circulam entre os carros em movimento e oferecem praticamente de tudo. Já pensei em fazer uma lista, mas ainda não comecei. Entretanto já vi oferecerem aos motoristas (vou desprezar o óbvio que também se faz no Brasil, como DVD´s piratas, balas, água, óculos e outros itens pouco imaginativos), pasmem, galões de combustível, botijões de gás, estetoscópios, macaco hidráulico para carros, linguiça, peixe seco, chave de roda, balança digital, mapas múndi, quadro para aulas com os respectivos apagadores e “Pilots”, mobiliário para residências, equipamentos eletrônicos diversos, frutas, cervejas, lanternas. Eu, particularmente, comprei uma escova para lustrar sapatos. A propósito, se pagar o primeiro preço que lhe informarem, corre o risco de desembolsar até o dobro do valor real. Não é desonestidade. A barganha e o negociar fazem parte da cultura de muitos povos, como os árabes e os angolanos. É só questão de aprendizado, adaptação e disposição para entender o diferente.
PS. Respondendo a questionamentos feitos no Blog e por e-mail, qualquer pessoa pode incluir link para este espaço ou reproduzir os textos, desde que fazendo referência à fonte: “Blog Diários de Angola”

sábado, 7 de agosto de 2010

De Luanda a Lobito passando por Benguela e babuínos

Tive que viajar a Benguela. Possivelmente herança do longo e recente período de guerras encerrado há menos de uma década, a burocracia nos aeroportos é maior que aquela à qual estava habituado. Logo à entrada há um funcionário que dá (ou não) acesso ao salão. Em frente ao balcão de check in outra pessoa que confere minha passagem, dá uma carimbada e me encaminha para o check in a (distantes) dois metros, imediatamente atrás do primeiro balcão. Passaporte e bagagens verificados, é a vez dos funcionários encarregados de passar os volumes no aparelho de raio x. Depois, outro balcão, de emigração, onde minha passagem e documentos são novamente verificados. Mais uma checada antes de ser autorizado a embarcar na aeronave. E é um voo doméstico! Tive sorte e desta vez o atraso foi de apenas quarenta minutos, na ida e uma hora e dez na volta. Tão pequenos que ninguém sequer pareceu reparar, muito menos se dar ao trabalho de reclamar. Ao desembarcar do avião, um susto. Perguntei onde estava e responderam: Catumbela. Tomei o avião errado, pensei, já que devia desembarcar em Benguela. Calma, explicaram, o aeroporto de Benguela está em obras e saltamos neste distante 15 minutos da cidade. Nas pistas MIGS protegidos por capas nos bicos das aeronaves lembravam mais uma vez o passado bélico a que me referi e que tantas dores causou a este povo sorridente. Benguela é uma cidade extremamente agradável, limpa, de ruas largas, litorânea, pouco movimentada, casas estilo colonial, geralmente bem cuidadas. Em nada lembra o caos de pessoas, carros, ruídos e odores de Luanda. À tarde, apesar de a temperatura em nada lembrar o estereótipo de calor africano, algo em volta de uns 22º, frio, portanto, crianças em roupas de baixo brincavam nas areias da praia, estudantes passeavam de mãos dadas em frente à casa do governador, um time de futebol feminino fazia ginástica num terreno de barro ao lado de uma escola. Nesta mesma jornada fui até Lobito, um dos maiores, talvez o maior porto de Angola. Cidade um pouco menos bem cuidada que Benguela, mas também muito bonita, com prédios coloniais lindíssimos e uma característica bem peculiar. Um braço de terra de uns duzentos metros de largura, em média, invade o mar por alguns quilómetros e cria um quebra-mar natural. Do lado externo, mar aberto, do lado da costa, um trecho de uns trezentos a quatrocentos metros de canal, entrada para o porto que fica na parte mais interna e protegida. Sobre esta faixa de terra, belos hotéis, restaurantes, residências. Entre Benguela e Lobito traços da cultura local, como casas feitas da mesma argila do chão, sem pintura, tornando meio indistintas as fronteiras entre onde termina o chão e começam as paredes. Ideogramas chineses, cada vez mais frequentes em Angola, registram a presença daquele país na reconstrução daquela que foi uma das mais importantes vias da África e seguramente a mais importante deste país – a ferrovia que ligava o Atlântico, a partir de Lobito, ao Oceano Índico, do lado oposto do continente africano. O trecho local tem reinauguração prevista o próximo ano. Em alguns trechos ao longo dos “caminhos de ferro” como é chamada a ferrovia aqui, muitas centenas de pessoas em feiras livres nas quais se vende de comida a peças de automóveis passando por vestuário. Um engarrafamento incomum para o horário –umas três e meia da tarde-, revela outra peculiaridade. Um grande comboio ocupando centenas de metros da rodovia, com muitas candongas, motos, carros particulares, caminhões, a maioria dos quais com o pisca-alerta ligado, ainda que seja dia, seguem um carro fúnebre em direção ao cemitério local, que fica ao lado da estrada. Uma última esticada para conhecer a Baía Azul, zona de veraneio contígua a Benguela, belíssima, mas totalmente diferente das praias do Brasil. Aqui a areia parece misturada com a argila e não tem a brancura a que nos acostumamos. É diferente, mas não menos bonito. O céu, totalmente encoberto já há mais de um mês (o famoso cacimbo) faz com que o sol mais se pareça com uma lua e possa ser olhado diretamente sem proteção para os olhos, e sem machucar a vista. Para concluir, no retorno à cidade, um bando de babuínos, com uns cinquenta ou mais indivíduos, se desloca do lado esquerdo da pista, depois muitos deles cruzam a estrada uns trinta metros à nossa frente, alguns com os filhotes agarrados nas costas. Abaixo, fotos de alguns destes registros. Na seqüência: 1) As construções que parecem emergir do chão de argila; 2)Belíssima ponte, réplica de uma que existe em Portugal,entre Benguela e Lobito; 3)Foto do porto, tirada do quebra-mar natural; 4)Carro funerário improvisado e parte do seu cortejo; 5)A Baía Azul e sua aparência real nesta época do ano, sob o manto do cacimbo; e 6) Babuíno atravessando a estrada.











Paciência


Diferentemente do que o título possa sugerir, não é nenhuma exortação a esta qualidade tão necessária nem nenhuma “tirada” preconceituosa que tantos têm ao se referir às coisas da África. Paciência é o nome do rapaz que cortou meu cabelo hoje. Calma, ou melhor, paciência que eu explico. Cheguei cedo ao salão e em poucos minutos um negro simpático, sorridente, bigodinho à la Errol Flynn (ver Google), cabeça raspada a navalha, informou-me que estava disponível. Antes de explicar-lhe como queria meu corte, já que era a primeira vez que nos encontrávamos, perguntei-lhe como se chamava, pois prefiro tratar todas as pessoas com quem vou ter relação pessoal ou profissional pelo nome. - Paciência, respondeu. – Que interessante, tive um colega no Brasil cujo apelido também era Paciência, expliquei-lhe. Lá na minha terra, a Bahia, havia uns biscoitos amarelos, pequenos, achatados, muito gostosos chamados paciência. Como este meu colega gostava e comia muito estes biscoitos no lanche, ficou o apelido. – Mas Paciência é o meu nome mesmo! - Nome? Como assim? Aí o Paciência, com toda a idem, explicou-me que era originário do Uíge, norte de Angola, onde teria começado a nação angolana. A sua etnia, os Bakongo, são muito supersticiosos, e acreditam muito nas tradições. Ele me contou que lá pode-se ver árvores que vertem sangue, na floresta, ou casas que aparecem da noite para o dia, sem que nenhuma pessoa tenha movido uma palha para construí-las, e ninguém sabe explicar como. Mas a tradição, insiste, é coisa muito importante e não pode acabar nunca. Uma delas determina que para uma mulher casada engravidar, ou, se ela estiver grávida, para a gravidez ser bem sucedida, o marido deve dar-lhe de presente um cabrito. O seu pai não dava de presente à esposa o tal cabrito. Assim, continuou o Paciência, a mulher do seu pai, ficava com a barriga grande, mas como não ganhava o cabrito, a barriga murchava, e nada de gravidez. Outra vez a barriga começava a crescer, mas ele não dava o cabrito e a barriga murchava de novo. – Que pedaço do cabrito deveria ser dado, perguntei, achando que alguma parte da anatomia do bicho deveria estar relacionada com aspectos de saúde da grávida. – O cabrito inteiro, respondeu-me. – Mas era um cabrito abatido, para ser cozido e comido? – Não, era um cabrito vivo, para a mulher fazer o que quisesse. Depois desta interrupção, o Paciência continuou, pacientemente a discorrer. – Mesmo sem ter recebido o cabrito de presente, depois de nove anos, ela engravidou. Quando eu nasci, meu pai então me explicou que ele esperou nove anos, sem casar com outra mulher, sem se separar, aguardando, pacientemente que a esposa engravidasse. Desta forma eu sou resultado da paciência dele. E ele me contava esta história sempre, e sorria muito, lembrando o quanto foi paciente para esperar por mim. Assim, escolheu meu nome, concluiu. Fiquei pensando, batutando cá com os meus botões. Se eu aplicasse a mesma lógica do pai dele, que nome será que teriam meus filhos? Acho que o Niro se chamaria “Surprêêêsaaa!!!!”. O Sean seria, “Mô, senta, que eu tenho uma novidade!!” e o Levi, “Mô, senta que eu tenho outra novidade!!”. Pensando bem, o pai do Paciência fica com a lógica e as tradições dele e eu fico com as minhas. É melhor.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Flashes I


Algumas questões por aqui ainda me surpreendem. A nossa Coordenadora Administrativa, a Patrícia, trouxe-me seu requerimento para saída de férias. Sempre estranhei que o e-mail dela fosse mariana.sardinha, mas achei que como em muitos outros casos, o nome escolhido para o endereço eletrônico fosse um dos seus nomes menos conhecido pelos colegas. Não. A Patrícia chama-se, de fato, Mariana. Descobri, de quebra que a Neuza (a Patrícia entregou logo para não ficar parecendo a única estranha do pedaço), outra colega do escritório, também não se chama Neuza, mas Elza. Perguntei por que. Ela ia se chamar Mariana Patrícia. O tabelião, muito sabiamente, achou que não ia ficar bem e se negou ao registro (em verdade a alegação foi a de que eram muitos nomes não angolanos para uma única pessoa). Como um nome era da preferência do pai e o outro da mãe, cada um continuou chamando-a como achava melhor e prevaleceu exatamente o nome descartado da certidão. A história da Neuza é parecida. Soube que isto por aqui é muito comum. Outro fato que me chama constantemente a atenção é a lógica do luandense (outras cidades de Angola são completamente distintas de Luanda, que comporta 30% da população do país exatamente na menor província) ao dirigir seus carros no dia-a-dia. Normalmente o trânsito daqui é altamente democrático. Estão no mesmo engarrafamento carrinhos pequenos, econômicos, muitos caindo aos pedaços, candongas, meio de transporte de massa (pequenas peruas) e Land Rovers, Hummers, BMW´s e outros carros de altíssimo luxo. O caos é total e totalmente organizado, ou seja cada um vai forçando a barra, enfiando a frente do seu carro enquanto pode e milímetros antes do choque, por uma lógica completamente clara para eles (e só para eles), um cede passagem e o outro vai em frente sem problemas. Raras são as buzinas e mais raras ainda as discussões. A estoicidade e o fatalismo são quase budistas. Nos fins de semana e de noite, entretanto, quando o trânsito é muito mais livre e pode-se desenvolver velocidades de 60, 80 por hora, qualquer detalhe que pareça em desacordo com que acha outro motorista provoca buzinadas homéricas e reclamações veementes. O stress é infinitamente maior quando o tráfego é livre… Para concluir a lógica totalmente distinta da brasileira no quesito trânsito, mesmo em avenidas expressas, de velocidade e altamente movimentadas, basta que algumas pessoas no acostamento ou no passeio comecem a estender a mão pedindo passagem ao lado da pista e, em segundos, um carro pára, os demais acompanham e as pessoas passam. Nunca vi reclamações, freiadas ou buzinadas, nestas horas. Nunca vi nenhum motorista que viesse atrás de outro que parou e que também não parasse e desse passagem à pessoa ou pessoas que a pediram. Os nomes das coisas, muitos originários do português de Portugal, outros mangoleses típicos, são um capítulo à parte. Luz interna, como abajur, luminária para leitura e outros que dão luminosidade localizada, são candeeiros. Sanduíche é sand, geladeira é geleira, bacana, legal é fixe, caminhonete é carrinha, freio é travão, retorno é bolacha, rótula é rotunda, caminhão é camião, gramado é relvado, faixa de pedestres é passadeira, trecho em obras é troço em obras, garoto, garota, miúdo ou miúda, jovem é puto, coroa é cota, pistolão (conhecido que favoreceria um amigo) é cunha, chopp é fino, gol é golo, goleiro é guarda-metas e o sanduíche mais comum aqui, feito com carne de boi é prego no pão (ninguém nunca me explicou porque, já pesquisei e não descobri). Para encerrar, chamam-me muito a atenção as crianças, as suas mães e suas relações. A maioria das mulheres da população típica, carrega as crianças amarradas às costas por um pano parecido com um xale, as pernas das crianças à volta da cintura das mães, numa posição, aparentemente desconfortável. Especialmente se considerarmos que elas ficam ali por horas a fio, enquanto a mãe anda, almoça, trabalha, carrega outras coisas, ou simplesmente se agacha num canto para descansar. Pois bem, nunca vi nenhuma destas crianças chorando, mostrando irritação, reclamando ou mesmo tentando chamar a atenção da mãe. Ficam ali quietinhas, olham placidamente para os lados, às vezes comem algo, numa total tranquilidade. Em um mês por aqui, uma única vez lembro-me de ter visto um garotinho chorar, mas apenas porque outro maior o estava pirraçando. Comentando isto com um amigo, este falou que nos seus anos de Angola, nunca viu uma criança fazer uma cena, nem nunca viu uma mãe batendo numa criança. Eu nunca vi uma mãe nem reclamando com seu filhote, muito menos brigando, menos ainda ameaçando ou batendo. Último exemplo da diferença de temperamento aparente das crianças daí e daqui: estava no cinema, assistindo uma comédia de aventuras adequada para crianças de pelo menos uns dez ou mais anos (legendada, requereria leitura fluente), quando percebi que muitas mães adentravam na sessão, já iniciada, com uma, duas, até três crianças com idade bem menor que a desejável, algumas seguramente ainda não alfabetizadas. Sala cheia, as mães foram deixando as crianças nos bancos que estavam vazios, não necessariamente próximos a elas. Uma sentou na mesma fila que eu, porém distante, e deixou o garotinho de uns cinco ou seis anos na cadeira ao meu lado. Já me preparei para as chamadas à mãe, reclamações por ter que ficar por mais de uma hora e meia vendo um filme que não fazia sentido para ele. O guri não deu uma única palavra, e do meio para o final do filme, encolheu as perninhas para cima da cadeira e as colocou debaixo da camisa, com frio. Recostou-se e cochilou, sem uma único som, quietinho, pelo resto da sessão. Parecidíssimo com os meus!!!

sábado, 24 de julho de 2010

Saudades "from" Angola (ou: para "os pentelhos")

Pensei em escrever sobre esta incômoda companhia já por diversas vezes. Não havia me sentido forte o suficiente. Ainda não sei se estou. Cheguei até a ensaiar umas idéias, há pouco mais de uma semana. Percebi que estava racionalizando e tentando falar da saudade como se fora algo alheio a mim, na terceira pessoa, de forma analítica. Ainda não dá, concluí. Cheguei mesmo a teclar (quase escrevi rabiscar, sinal da idade) algumas palavras sobre o assunto. Comecei categorizando a saudade como insidiosa. Isto porque a sensação que eu tinha é de que ela, como uma serpente silenciosa, mimetista, ficava como que invisível por trás das coisas mais simples, prosaicas, cotidianas, e então, e no instante em que eu estava com a guarda completamente baixa, vinha sub-repticiamente e me acertava de forma aguda, profunda, rápida. A forma que causa mais dor pois que não prepara para o impacto, não dá tempo de a adrenalina enrijecer os sentidos, os tecidos, em especial os emocionais. Hoje, apesar de não sentir menos dor, nem de a dor ser menos profunda, ou menos persistente, não percebo mais a saudade como desleal, como adversária, inimiga. Ela é a minha maior companheira e a salvaguarda última de lucidez, de sentido, de garantia de retorno ao que realmente importa. A saudade me lembra de porque estou aqui. Estou aqui por minha própria causa, e isto (ou esta, a minha causa) significa meus filhos, minha esposa, lar, amigos, meus entes queridos que me constituem, me dão alma. Já de algum tempo não mais me sou, tão somente. Deixei este patamar egoístico e mesquinho na medida em que aprendi o verdadeiro sentido do amor, que só vem quando você se percebe olhado por um olhar que um dia fez parte do seu corpo físico, mas que agora te acolhe, generoso, num universo muito maior que seu (nosso) próprio limite, e no qual permite que você coabite. A saudade se esconde “inocente” no marcador de livros que uso toda noite para minha leitura ritual antes de dormir. Meu caçula literalmente me proibia de dobrar o canto das páginas dos seus livros, que eu também lia. Ficou o hábito. Fica a lembrança ali disfarçada de ato inofensivo. Voltando para casa, noite, depois de um dia exaustivo, começo a sentir um cheirinho de carne na brasa, e antes de perceber, sinto a vozinha do Sê reclamando de que tenho feito poucos churrascos ultimamente e que exige picanha beeem-maaal –passada. Ou que brinca, às vésperas da minha partida, dizendo que a criatividade culinária da casa vai diminuir. Como o foi um dia meu pai, também me tornei um alquimista de cozinha, misturando um monte de coisas e sem nunca fazer um prato igual ao anterior. A molecada adora. Eu mais ainda. A história e os ciclos se repetem. Desta vez, aqui. Em meio a cinco milhões de pessoas preencho meus espaços emocionais e minhas memórias com estas sensações, com estes sons, com estes cheiros e com este sentido. Ou, em outras palavras, com estas saudades.

domingo, 18 de julho de 2010

Hash House Harriers

Ontem recebi o convite de uma colega brasileira que está no mesmo hotel que eu, a Ana, para irmos com o Robert e a Fumiko (amigos dela) nos encontrar com um grupo, os Hash. Ana explicou-me que são pessoas de todas as nacionalidades que se reúnem em diversas localidades do mundo para socializar, caminhar e/ou correr (depende da disposição), e que têm como idioma comum o inglês. Eles se encontram na casa de um dos membros do grupo, bebem cerveja ou refrigerante enquanto esperam todos chegarem, depois saem para caminhadas longas ou corridas. Achei a idéia interessante e fomos. Chegamos num casarão muitíssimo agradável onde já se encontravam umas 50 pessoas. Um australiano e um holandês assumiram a liderança dos trabalhos e depois de uma série de palavras de ordem e explicação das regras básicas para os novatos, distribuíram adereços. Uns receberam chapéu de frango (isto mesmo, um chapéu com um frango de feltro em cima), outros perucas laranja, cor-de-rosa, chapéus de pizzaiolo, vassouras com as cerdas coloridas, chapéu de dragão com o rabo cheio de espinhos e outras maluquices mais, para serem usados durante o percurso. Começamos a caminhada por volta das quatro da tarde. O grupo, já àquela altura com umas sessenta ou mais pessoas de todas as faixas etárias, começou a andar pelas mais diversas ruas, sem nenhum padrão perceptível, embora me explicassem que o caminho era traçado com antecedência. De ruelas estreitas nas quais carros eram lavados e consertados, becos sem calçamento e bastante lama a ruas históricas belíssimas e bucólicas, tudo era parte do roteiro. Obviamente éramos foco das atenções de todos por onde passava aquele bando de “loucos” com perucas coloridas, chapéus esquisitos e biotipos os mais diversos – de europeus e sul-africanos extremamente claros a africanos negros passando por um chinês e uma japonesa (além do moreno aqui, claro). Em todas as ruas os carros paravam para nos deixar passar, possivelmente preocupados em não serem atingidos por aqueles alienígenas estranhíssimos. Depois de uns quarenta minutos, pit stop numa praça arborizada onde uma van com diversas caixas de cervejas geladíssimas e refrigerantes aguardava os sedentos caminhantes. Uns parcos dez minutos após, quando um grupo de crianças de bicicleta já se reunia para tentar entender o que estava acontecendo, retomamos a marcha por mais meia hora, até a casa da parada final que descobri ser de um grupo de brasileiros, pilotos de helicóptero. Ali pude conversar com a Olívia, do Zimbabwe, com o Li-al-gu-ma-coi-sa, da China, com uma sul-africana, um australiano e por aí vai. A conversa mais longa foi com o Robert, americano de Kansas. Creio que nos identificamos pela distância da família. Ele é casado com uma sul-coreana que está nos States, apaixonado por filmes da terra da esposa e ficou felicíssimo quando descobriu que eu havia assistido e adorado um filme daquele país que fez muito sucesso em todo o mundo -“Old Boy”. Garantiu-me que vai me dar mais três filmes para eu baixar e assistir no meu computador. Também conversei com a Fumiko que fala português com perfeição, já viveu anos no Brasil, além de Portugal, Moçambique, Bélgica e agora, Angola. Apesar de menos de um metro e meio de altura é possivelmente, pelo que eu soube, a melhor corredora do grupo. Ao final do encontro um “batizado” com os novos membros que têm que responder de onde vêm, qual seu nome, porque estão ali, e, apesar das perguntas bobas, são sempre acusados de algum erro e têm que pagar a pena devida –banho de cerveja (o mais comum) e/ou tomar cerveja num vaso sanitário plástico de brinquedo, que todos receberam. Fingi que era membro da confraria desde pequenininho para não pagar mico e nem sair com cheiro de cerveja da cabeça aos pés, sujando o carro e sendo (com certeza) olhado com extremas restrições na volta ao hotel. Hoje pedi ajuda aos dois baixinhos lá de casa e descobri que os Hash House Hariers são comunidades informais que existem de forma descentralizada em todo o mundo, com origem em 1938 e que se auto intitulam “grupo de bebida com problemas de corrida”. Forma saudável e prazerosa de conhecer pessoas, lugares e socializar. Fica o registro.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Amanhecendo




Aqui são seis e meia da manhã. O cacimbo que ainda tanto me fascina e intriga deixa tudo com um jeito meio fantasmagórico, difuso. Ao olhar em volta um desavisado jamais imaginaria que está à mesma altura da Bahia em relação à linha do Equador. Diferentemente do inverno de Salvador, com fortes chuvas, frentes frias e vento, aqui há permanentemente esta névoa, temperaturas amenas (ontem à noite fazia 21º), baixa umidade e nenhuma chuva. Um amigo contou que uma vez presenciou a troca do telhado de um escritório, o qual ficou duas semanas descoberto, neste período, porque os responsáveis tinham certeza de que não choveria. E não choveu. No último domingo pela manhã, na volta da caminhada, senti algumas gotículas de água no rosto. Pensei, é agora! Nada. A leve garoa durou pouco mais que um minuto e desapareceu como que por encanto. O tempo seco é outra novidade, já que de maneira geral costumava associar névoa e baixa visibilidade à umidade e àquela impressão de que as nuvens tinham descido até o chão. Antes das sete o movimento de carros ainda não é grande, mas basta abrir a janela e o ruído das grandes máquinas das construtoras invade o quarto. Luanda é um canteiro permanente de obras. Aqui perto do hotel, zona do Aeroporto, um giro de 360º mostra diversos grandes edifícios em construção em todas as quadras e olha que não estamos na área com maior índice de edificações novas. Próximo ao porto ou na parte Sul o ritmo é muitíssimo maior. Na direção de Luanda Sul, em especial, para onde a cidade cresce de forma ordenada e a passos de gigante, obra (belíssima) da Odebrecht, para onde quer que se olhe, condomínios residenciais e grandes edifícios dominam a paisagem. Há uma semana me perdi na volta de um evento, onze da noite. Ocorre em média duas, três vezes por dia (eu me perder, não os eventos) -meu senso de desorientação está a carga máxima por aqui. Cheguei à avenida marginal pelo Norte (simplesmente o lado oposto de onde deveria estar) e surpreso, face ao avançado da hora, passei por entre muitas dezenas de prédios e incontáveis caminhões e tratores em ritmo alucinante, trabalhadores à toda, refletores fortíssimos transformando a noite alta em dia claro, poeira que mal permita ver além de poucos metros, em resumo, nada parecido com que se imaginaria para aquele horário. Ainda falando em construções e deslocamento da cidade, há poucos dia um colega me falou bastante orgulhoso (e de forma completamente compreensível na sua ótica) que toda aquela zona (Talatona, Luanda Sul) há poucos anos era “tudo mato, cheio de cobras”. Pensei na minha mulher, doutoranda de Meio Ambiente lá na terrinha e no que ela acharia do que foi feito com as pobres cobras e de quebra pássaros, roedores e demais ex-habitantes do lugar. Esta, entretanto, deverá ser (acredito) o próximo foco da comunidade local pressionada por cinco milhões de habitantes alocados num espaço previsto para um número bem menor. Tudo isto se traduz em problemas imediatos de infra-estrutura básica, saneamento e habitação que se refletem diretamente no cotidiano e saúde, clamando por soluções no curtíssimo prazo. Agora passa um pouco das sete, daqui a pouco começo no batente enquanto os meus dormem o sono dos justos, três e pouco da madrugada na nossa casa. Falei com eles antes de dormir ontem, como sempre faço, e as suas vidinhas maravilhosas continuam no mesmo ritmo. Os moleques bem na escola, a mulher trabalhando, construindo a tese, mantendo tudo em ordem. Eu, aqui, fazendo a parte que me cabe, orando e torcendo por eles. E escrevendo de vez em quando que ninguém é de ferro.

domingo, 11 de julho de 2010

Primeira semana em Luanda


Completei minha primeira semana em solo africano. Nenhuma grande surpresa já que há sete meses converso com amigos que aqui vivem, pesquisei muitos blogs, sites de organismos oficiais e outros. Algumas diferenças de lógica da população, entretanto, são interessantes e só podem ser percebidos por quem aqui vive. Muitos locais, em especial os que têm menos convívio com brasileiros, ao ouvirem nosso coloquial “bom dia!” respondem, “obrigado!”. No sábado, fui cedo ao restaurante do hotel e perguntei até que horas ficaria aberto para o café. Dez horas, responderam-me. Alonguei, caminhei, corri, cheguei quinze para as dez e fui ao restaurante. Fechado. Reclamei na recepção. - Vais lá e fala com a pessoa. Fui. - Está fechado, respondeu o garçom. - Mas como, me disseram que fechava às dez e ainda faltam quinze minutos. - Queres tomar café, podes sentar. - Quero é entender como funciona para saber o que fazer das próximas vezes, quer dizer que se antes das dez não tiver cliente fecha? O garçom já com um prato cheio de frutas para mim, foi logo dizendo - aqui ninguém sai sem tomar seu café, queres mais alguma coisa? Achei melhor comer ao invés de discutir, e fui muitíssimo bem atendido. O linguajar coloquial também guarda algumas surpresas. Por exemplo: “segues aquela carrinha azul, depois da rotunda sobes a ponte e fazes uma bolacha à direita” significa “siga aquela camionete azul, depois da rótula suba o viaduto e dobre à direita”. Ainda no sábado aceitei o convite de amigos para ir ao Jumbo, grande hipermercado com maior variedade e menor preço, segundo eles. Fila grande demais, resolveram ir a um atacadista de bebidas próximo. Depois de tentativas e erros, chegamos numa rua estreita, sem pavimentação, muito lixo, sem vaga para estacionar (foto superior). Finalmente conseguimos uma. O lugar era o maior muquifo, parecendo boteco de terceira em periferia perigosa no Brasil. Quando entrei, entretanto, fiquei pasmo. Apesar de não ter ar condicionado, gôndola, carrinho, empregado fardado e nem qualquer conforto, tinha bebidas de todas as nacionalidades, tipos marcas e com preço pelo menos do uísque 12 anos, equivalente à metade do que se vê no Brasil (trinta e sete reais). Para concluir, o cacimbo nos brinda com um belo (e típico) por do sol cinzento no fim de tarde do domingo.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Heterogeneidade urbanística



Uma das características que mais me chamaram a atenção em Luanda foi a heterogeneidade urbanística da grande maioria das suas ruas e bairros da parte dita "antiga" da cidade. Para um brasileiro a coexistência de bairros nobres e favelas, no Rio, São Paulo, Salvador, são comuns. Entretanto em Luanda, mais que isto, coexistem em uma mesma avenida, residências caras, espaçosas e com diversos pisos, hotéis de luxo, como o Alvalade, 26 andares, piscina, ginásio e diária de U$ 400,00 com residências em precário estado de conservação, servindo muitas vezes de moradia e comércio informal (os telhados da foto superior são de casas que ficam na mesma rua do hotel e das casas de luxo). O rápido crescimento do país nesta quase década que separa o período de paz e prosperidade dos 27 anos de guerra é um dos principais responsáveis por este fenômeno que já coloca Luanda, segundo um periódico local em matéria datada do último domingo, como a mais cara capital do mundo. Mais uma faceta desta complexa cidade, na área de Luanda Sul, bairros de Belas, Talatona, zonas de recente urbanização e o novo vetor de crescimento da cidade, os condomínios e altos prédios de design bem elaborado lembram (no aspecto arquitetônico e não geográfico) a zona sul do Rio, área da Barra, com largas avenidas e tráfego ordenado, embora bastante intenso (fotos abaixo). O ritmo de crescimento é frenético e numa volta pela cidade, mesmo às 22 ou 23 horas, como se estivéssemos em plena manhã, caminhões, trabalhadores, gruas, muito movimento e muita poeira atestam o fato.


Domingo em Luanda


Cidade extremamente populosa, com mais de 4 milhões de habitantes, no domingo Luanda não foge do estereótipo de cidade tropical. A praia é a principal opção de lazer disponível para todas as classes sociais. As de maior poder aquisitivo utilizam-se de seus jet skis, barcos e lanchas, ou, mais habitualmente, confraternizam em agradáveis restaurantes que servem boa comida e bebida na Marginal (principal avenida da orla) ou na Ilha (muito mais opções), que acabou sendo transformada numa península em função de ter sido feita uma ligação entre a sua parte Sul e o continente. A comida é cara para os padrões brasileiros. Nenhum prato razoável sai por muito menos de U$ 50,00 (a maioria é mais cara que isto) entretanto, as bebidas são de mesmo valor, ou mais baratas que as similares em ambientes equivalentes no Brasil e de nacionalidades mais variadas. A comunidade de menor poder aquisitivo diverte-se praticando esportes coletivos na areia, fora dos trechos quase que "privativos" dos restaurantes (ver foto) e em barracas que servem comida e bebida (com freqüência em meio a música bastante alta). Ambulantes também são opção. Outra alternativa recente (inaugurado em 2007) é o Belas Shopping. Quando da inauguração era considerado distante e de difícil acesso. Hoje, apenas três anos depois, praticamente inexistem áreas entre a parte central da cidade e o shopping sem construções ou condomínios já concluídos e empreendimentos diversos. O Belas, no contexto de Augé, seria um não lugar típico, com o mesmo bom gosto de acabamento e funcionalidades, mesmas qualidades e impessoalidade deste tipo de ambiente. Oito salas de projeção, supermercado, praça de alimentação, áreas de convivência abarotadas no período da tarde. Muitas famílias e crianças que me lembraram forte e dolorosamente quão distante estou dos meus "miúdos", da esposa e de casa. Mas, como dizem os franceses, c´ést la vie, a hora é de içar velas.